quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Cantares de reis – Dos “pequenos” e dos “grandes”

O espírito natalício, nos meus tempos de criança, durava quase dois meses. Começava em meados de dezembro, com a novena ao Menino e a montagem dos presépios, e terminava em fins de janeiro, com os últimos cantares de reis. Pelo meio, ficavam as conhecidas grandes noites das três grandes consoadas - Natal, Ano Velho (ou Novo) e Reis - e a celebração das respectivas efemérides, de natureza essencialmente religiosa, tanto canónica como popular.

Deixando de parte (ou para outra ocasião, talvez), o retorno a outros festejos da quadra, vou hoje, ternamente, recordar os reis, melhor dizendo, os cantares de reis que, em meados do século passado, se entoavam por cá, na minha terra natal.



Recorde-se que a Festa dos Reis celebra a «Adoração dos Magos», episódio que apenas o evangelista Mateus narra [Mt. 2, 1-12]. Por se tratar de relato bem conhecido e largamente representado, não será necessário recontá-lo. A igreja católica celebra, neste episódio, a epifania de Jesus. O povo, nos seus cantares de reis, evoca-o e reinterpreta-o.

Os cantares de reis, cá no Mato, começavam na noite de cinco para seis de janeiro, após a ceia. Havia dois tipos destes cantares: os “reis dos grandes” e os “reis dos pequenos”. Os primeiros eram cantados por grupos de jovens e adultos. Os segundos, por grupos de crianças adolescentes. Eram formados, normalmente, por conterrâneos do sexo masculino. De vez em quando, lá aparecia também um ou outro grupo de freguesias circunvizinhas. Além disso, os “reis dos grandes” tinham uma composição textual mais desenvolvida. Os “reis dos pequenos” não eram acompanhados por instrumentos musicais, ou então por alguns rudes instrumentos ou como tal considerados.


Os cantores de uns como de outros eram, regra geral, em número reduzido. Raramente ultrapassavam a meia dúzia. Os “reis dos pequenos”, sendo constituídos por crianças pobres, se fossem muitos, pouco tocaria a cada um da gratificação/esmola recebida. Gratificação/esmola que era logo ali, ainda à porta, janela ou postigo do “patrão”, irmãmente repartida entre os seus elementos (“pataca a mim, pataca a ti”). O dinheiro era a “paga” habitual e mais desejada. Mas havia quem oferecesse produtos alimentares, como pães de trigo, pedaços de boroa; ou agrícolas, como uma saquita de batatas ou de feijões. Os “reis dos grandes”, por sua vez, funcionavam sobretudo como pretexto e aperitivo para um sarau de são convívio entre amigos e vizinhos, com bons comes e muitos bebes de permeio, na casa do anfitrião.

Os “pequenos” apareciam sem aviso nem sinais. Os “grandes” resultavam, geralmente, de combinação antecipada. Era, por vezes, o próprio anfitrião que convidava o grupo, geralmente formado por amigos que sabiam tocar este ou aquele instrumento (concertina e/ou viola e/ou cavaquinhos e/ou ferrinhos e/ou tambor…) E assim apareciam, uns e outros, sem ensaios e cuidados. Todo o “sucesso” dependia do jeito e habilidades de cada um e do conhecimento que todos tinham desta tradição oral. O grupo dos “grandes” ainda ia afinando, pelo caminho, vozes e instrumental. Mas os “pequenos”, esses batiam casas e caminhos, em correrias silenciosas, forma também de espalhar o frio e os medos. Por estas e outras é que, na mesma noite, “os pequenos” podiam ir cantar os reis a várias casas, enquanto “os grandes” se ficavam, geralmente, por uma só.

Resta referir, terminando esta brevíssima introdução, que não caía bem, cá na sociedade de Mato, recusar os cantares de reis. Os dos “pequenos”, porque se negava esmola, não se cumpria a caridade. Os dos “grandes”, porque era uma descortesia, ou um sinal de forretice ou avareza, senão mesmo de pobreza. E naquele tempo, os reis não se cantavam, como se faz agora (não ainda cá no Mato), para angariar fundos para obras da igreja ou para solidariamente socorrer necessitados. Mas pode bem ser que, com o processo de empobrecimento em curso, oficialmente decretado, talvez se volte a ter à porta grupos de pobres crianças cantando os reis por esmola.

Cá na minha terra natal, os cantares de reis, entoados pelos grupos dos “grandes”, apresentavam a seguinte organização: (i) uma parte de natureza fática, através da qual os cantores estabeleciam contacto com o anfitrião e dele obtinham autorização ou recusa para cantar; (ii) uma parte com a narração cantada/contada (em verso) do episódio dos “reis magos”; (iii) uma parte de “vivas”, destinadas a elogiar o “senhor da casa”, esposa, filhos e outros que nela também habitassem ou nessa noite nela estivessem; e (iv) uma parte também de natureza fática, mas de fecho ou fechamento, através da qual o grupo se despedia. Os “reis dos pequenos” apresentavam, como disse, uma versão mais curta, não incluindo, geralmente, (toda) a parte (ii). (Na transcrição dos cantares, indicarei cada uma destas partes, utilizando esta numeração. Assinalarei com *, por outro lado, variantes encontradas.)

Deixando para o próximo post, por mais longa, a versão dos “grandes”, vamos à dos “pequenos”. Ora então era assim. Chegados a uma casa, um rapaz do grupo, gritava, até que o proprietário (normalmente tratado por “patrão” ou por “senhor [+ nome, ou apelido]”, quando conhecido) correspondesse:

(i)         - Ó *patrão, quer que cante os reis? [*senhor + nome ou apelido]

Se a resposta fosse negativa, o rapaz insistia, habitualmente, mais uma ou duas vezes. Continuando o “patrão” na recusa, o rapaz pedia então que lhe dessem, ao menos, “a esmolinha”. Casos havia, segundo informantes, que, por vezes, os donos da casa, por razões de doença ou de luto, recusavam o cantares de reis, mas não a gratificação/esmola.

Sendo a resposta positiva (que habitualmente acontecia), o grupo dava início, de imediato, ao seu cantar. Começava, geralmente, o “chefe” (podem chamar-lhe solista e/ou porta voz), aquele que tinha feito a pergunta/pedido. Seguia-o o grupo, em coro, pelo menos no refrão. Nem sempre afinadinhos, é verdade. Mas lá iam cantando e às vezes sorrindo.

(ii)         Senhores da casa, gente nobre,
Escutareis e ouvireis,
Ouvireis novos cantores* (*pastores)
Que vos vêm cantar os reis.

Refrão
Aqui estamos nós, todos reunidos,
A cantar os reis aos nossos amigos.
Não é por interesse, é por amizade,
A cantar* os reis à sociedade  (*Cantamos).

Os “reis dos pequenos”, como disse, saltavam a narração do episódio dos magos.
Passavam, por isso, para a parte dos “vivas”, das felicitações, acompanhados, por vezes, de pedido(s).

(iii)         A rolinha vai rolando,
Por cima *duma cebola [*dum laranjal].
Viva lá, senhor [nome],
*A mais a sua senhora [*E toda a família geral].

Refrão

Seguiam-se os “vivas” aos filhos, segundo a hierarquia da idade, isto é, do mais velho para o mais novo. [Cá o rapaz era, por isso, sempre o último.] Os pequenos cantores, chegavam, por vezes, a perguntar o nome dos presentes, bem como se já tinham sido todos “vivados” ou se havia ainda “mais alguém de fora”. Apresento, de seguida, alguns exemplos de “vivas”.

Viva lá, menina [nome],
Raminho de pessegueiro,
As flores lhe vão caindo
Em redor do travesseiro.

Refrão

Viva lá, menina [nome],
Raminho de salsa crua,
No catre da sua cama,
Põe-se o sol e nasce a lua.

Refrão

Viva lá, menina/o [nome],
Raminho de palma branca,
Seu corpinho é de neve,
Sua alminha já ‘stá santa.

Refrão

Viva lá, menino [nome],
Casaquinha de veludo,
Meta a mão no seu bolsinho,
Bote pr’a cá um escudo.

Refrão

“Vivados” todos, o grupo despedia-se, com a quadra seguinte ou com um “Viva geral!”.

(iv)        Vamos dar as despedidas,
Na *folhinha do café, [*horinha]
Para o ano cá voltamos [*tornamos],
Doze meses pouco é.

Refrão

E-ternamente retornarei, em breve, com a versão dos “reis dos grandes”.

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Sim, Ibel. Esta tradição está a perder-se. Mas ela também faz parte do nosso património cultural imaterial.

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