segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Isto é um sarilho de carvalho


Com esta imagem e o comentário de que se tratava do brinquedo de cocras que, em criança, mais gostava de fazer e com ele brincar, terminei o post anterior. E prometia, para este, o “manual” da sua construção e uso. Pois cá vai.
A feitura deste brinquedo é muito simples e fácil. Basta manusear os materiais com algum cuidado. Exigências das suas dimensões, constituição e fragilidades.
Vamos, então, à receita. Os ingredientes necessários à confeção deste sarilho propriamente dito são os seguintes:
a)  1 cocra (bugalho) grande, de preferência  ainda não perfurada pelo bicho (insecto; ver post anterior).
b) 2 pequenos paus, com 2 ou 3 cm de diâmetro, comprimento igual de 8 a 10 cm e quanto mais direitinhos melhor.
c) 1 pau, um pouco mais grosso que os anteriores, com 15 a 20 cm de comprimento e também direitinho.
d) 1 cúpula grande de landra (bolota).
e)  Fio (ráfia, lã, algodão, sisal… eu utilizei lã velha) qb.
f) 2 forquetas.


Agora, a confeção do sarilho. Se não tiver um carvalho à mão, use outros paus. Não é por isso que o sarilho deixa de ser de carvalho, pois os seus elementos principais são a cocra e a cúpula, produzidos por esta árvore. [Um parêntesis para dizer que à cúpula chamava eu e os colegas de brincadeiras, carapuça (da landra, claro); a cúpula, nesse tempo, não fazia parte do meu léxico activo.]
Para facilitar a execução da obra, limpe os paus, com um canivete ou faca (não se fira), de nós, elos, rebentos ou saliências. Retire-lhe ou alise também a casca, sobretudo se for rugosa. Quanto mais lisinhos e redondos eles forem, melhor será a perfuração da cocra, como a seguir se descreve.
Ora, então, escolha a cocra. A maior, pois ela vai suportar a injeção dos paus. Atravesse-a, no sentido base-topo (ou topo-base), com o pau referido em c), depois de limpo e liso como antes foi indicado. A casca da cocra é, como sabe, muito frágil. Utilize, por isso, uma pequena verruma, chave de fendas em cruz (todas, porém, de espessura ligeiramente inferior ao pau), ponta de tesoura ou canivete, para começar a abrir os dois buraquinhos por onde quer meter o dito cujo [Fig. 3]. Ele deve ficar bem ajustado à cocra, sem ficar lasso ou solto. Fixe a cocra a uma distância aproximada de 5 cm de uma das extremidades do pau. Ela não pode rodar em torno dele. Caso isso aconteça, o sarilho não ensarilha. O melhor é usar outra cocra e começar de novo. Ou então aplique, nos orifícios, depois do pau enfiado, umas gotas de cola branca (de madeira). Deixe secar, para ganhar consistência. Acaba de fazer o eixo do sarilho [Fig. 4].


Agora, atravesse a cocra com os 2 pauzinhos, indicados em b), formando ângulos retos entre si e em relação ao eixo. [Fig. 5] Deve ter os mesmos cuidados na abertura dos buraquinhos e no atravessamento da cocra. Conseguiu? Ótimo. Acaba de fazer os braços ou manípulos do sarilho [Fig. 6].


Uma cúpula (carapuça) de landra, indicada em d), era (é) o balde do sarilho. Abra dois pequeninos orifícios, diametral e simetricamente opostos, na borda da carapuça [Fig. 7]. Com cuidado, para não quebrar nem a carapuça nem a borda. Se tal desastre se verificar, pegue noutra e recomece. Aí não há cola que lhe valha. Faça-lhe, depois, uma asa (pega). Pode ser um fino arame, curvando-o em arco, e dobrando-lhe cada uma das extremidades nos buracos do balde [Fig. 8]. Ou, então, enfie o fio, indicado em e), nos referidos orifícios, e com ele faça a asa. Em seguida, prenda uma extremidade do fio à curva do balde e a outra ao eixo do sarilho, onde o enrolará.



E pronto. Está feito o sarilho [Fig. 9]. Vê como não foi sarilho nenhum fazer este sarilho de carvalho?
Mas este brinquedo, pobre e frágil réplica, em miniatura, de um real e duro instrumento de trabalho, para funcionar, precisa dos suportes, onde toma apoio e onde roda. Pegue, então, numa tesoura da poda ou num pequeno serrote, vá ao carvalho (ou outra árvore) e corte um ramo em que haja, pelo menos, duas forquetas. Uma forqueta é um pequeno galho ramificado em V, numa extremidade. A altura, da base do pau ao vértice das forquetas, é qb. Depende do tamanho do trabalhador. Enterre-as, mais ou menos, conforme a estatura do sarilheiro. Coloque o sarilho nas forquetas [Fig. 10]. Agora, sim, já pode, de balde, começar a tirar água do poço e a dá-la sem caneco. Se o poço não estiver seco, claro.


Em criança, quando me dava aos sarilhos, fazia uma pequena cova no chão, geralmente nos campos ou bouças para onde meus pais me obrigavam levar o gado a pastar e aí vigiá-lo de fugas inesperadas ou de assaltos à horta. (Ai aquelas tourinhas galegas, tão ternas e mansas, tão lindas, que um dia, ao serem vendidas, tanto me fizeram chorar!…). Espetava, depois, as forquetas junto do poço. Deitava-lhe água lá para dentro, que ia buscar na concha das mãos ao rego. Santa ingenuidade, santa paciência. Até que alguém (pai, mãe, irmãos, vizinho…), me gritava: «Ó Dabide, olhò gado nas coubes!...» Depois, era só dar ao sarilho. Primeiro, desensarilhando-o, para baixar o balde vazio, até ele bater na água e ficar cheio dela Fig. 11]. Depois, ensarilhando para cima, fazendo subir o balde até à boca do poço. Aqui chegado, é preciso segurar bem o sarilho, com mão firme num dos seus braços, enquanto com a outra se apanha o balde e se desvia para a borda do poço [Fig. 12]. E a água despejava-a no local desejado e com as finalidades que a imaginação se encarregava, cada vez, de inventar. Sempre baseada, porém, na realidade rural mais conhecida e vivida: regar a horta e plantas, bebedouro de galinhas, porcos e outra bicharada de maior porte. Ou para as lides da cozinha. Ou mesmo para matar a sede humana.

Para tornar – HOJE – este meu brinquedo infantil mais realista e poder arrumá-lo na estante dos meus afetos, apliquei-lhe um poço móvel. Peguei, como se vê, numa pequena lata [ele há tantas (de tinta, de alimentos…) e tantos com tanta!], cujo inexorável destino era o lixo, fixei-lhe as forquetas com arame e enfiei-lhe o sarilho. Com ele retornei aos meus tempos de guardador de vacas (poucas) e de sonhos (muitos, tantos), como o Constantino do Redol.
«É uma beleza!» - exclamou o sarilheiro. «Posso ficar no retrato?» – perguntou ao ignoto artesão.

E-ternamente retornarei. Por ele. Por isso.
 

3 comentários:

  1. lindoooooooooo! Nem imagina o deleite que foi ler esta descrição "ensarilhada". Espero que também "ensarilhe" uma forma de passar estas receitas às crianças de hoje, não apenas "e-ternamente retornando", mas talvez "ternamente oficinando" também, "partilhando essa estante de afetos"... PARABÉNS por esta NOBRE INICIATIVA!Abraço. Lúcia.

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  2. Obrigado, Lúcia, pelas suas palavras. Como já não tenho crianças (nem minhas, nem de terceiros), espero que sejam outros, especialmente os meus ex-alunos, a ensinar estes e outros brinquedos tradicionais e formas como estas de brincar.
    Abraço. David

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  3. David, isto é o que eu chamo uma croca verdadeiramente ensarilhada.

    Confesso a minha ignorância, desconhecia o termo "croca", para mim foi sempre bugalho.

    O sarilheiro está uma delícia, com um chapelinho a condizer com a época natalícia que se aproxima.

    beijos,
    gabi

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