terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Cantares de reis – Dos “pequenos” e dos “grandes” (II)

Natividade de Josefa de Óbidos

Não tenho palavra de rei [apesar do nome], mas cá estou, hoje, para recordar e partilhar o cantar de reis – “dos grandes” – como prometi no post anterior.

Como então referi, a versão dos “reis dos grandes” era mais desenvolvida que a “dos pequenos”. Nestes, os cantores saltavam, habitualmente, a parte referente ao episódio dos magos. Naqueles - recorde-se - a sua composição/organização (estrutura) era, regra geral, a seguinte: (i) parte fática, através da qual os cantores estabeleciam contacto com o anfitrião e dele obtinham autorização ou recusa para cantar; (ii) parte com a narração cantada/contada (em verso) do episódio dos “reis magos”; (iii) parte de “vivas”, destinadas a saudar e felicitar o “senhor da casa”, família e eventuais terceiros presentes; e (iv) parte também fática de fecho ou fechamento, através da qual o grupo terminava o cantar e se despedia.
Como disse, no post anterior, “os reis dos grandes” eram habitualmente combinados com o “patrão” da casa. Mas havia também grupos de cantores adultos que apareciam sem aviso nem acordo prévio. Esperavam, contudo, ser também aceites e tão bem recebidos pelo proprietário, como os outros.
Tal como “os pequenos”, também “os grandes”, chegados à porta, janela ou postigo de uma casa, perguntavam/pediam se podiam cantar os reis. Mas havia grupos que começavam, mal aí chegados, a tradição. Segundo alguns informantes, era o mais habitual. Neste caso, o contacto estabelecia-se através da seguinte quadra:

(i)         Aqui estão os reis à porta,
Dispostos para os cantar,
Se o senhor nos der licença,
Nós lh’os imos começar.

Refrão
Aqui estamos nós, todos reunidos,
A cantar os reis aos nossos amigos.
Não é por interesse, é por amizade,
*A cantar os reis à sociedade  (*Cantamos).
                                    
Seguia-se a resposta do “senhor”, que era, geralmente, positiva. Mas podia ser de recusa, alegando, por vezes, já estar na cama ou a dormir. Havia, porém, os que insistiam. Todavia, se se entendesse que a recusa era por falta de (ou má) vontade, “os grandes” chegavam a formular ameaças, mais ou menos indelicadas e ofensivas. Como esta, para citar a mais «malcriada»:

Ouça lá, senhor *da casa [*nome ou apelido],
Casaquinha de bolota.
Se não quer que cante os reis,
Cagamos-lhe aqui à porta.

Claro que já não haveria tempo para o refrão. Toca a dar à sola! Um balde de água viria a caminho de cair-lhes em cima. Se não uma valente penicada. (Se desconhece esta palavra, pense na função dos penicos.) A tradição, contudo, cumpria-se, conforme mandava a “lei” dos bons usos e costumes. O grupo passava, então, à fase seguinte:

(ii)        Reis que do oriente vindes,
Que vindes a procurar?
Procuramos rei Herodes,
P’ra bem nos encaminhar.

Refrão
Aqui estamos nós, todos reunidos,
A cantar os reis aos nossos amigos.
Não é por interesse, é por amizade,
A cantar* os reis à sociedade  (*Cantamos).

Herodes como um malvado,
Como um travesso maligno,
Às avessas ensinara
Aos santos reis o caminho.

Refrão

Mas eles, como eram santos,
Seguiram o seu destino,
Guiados por uma estrela,
Até chegar ao Menino.

Refrão

O Menino está no berço,
coberto c’um cobertor.
Os anjinhos vão cantando:
Louvado seja o Senhor.

Refrão

A estrela se baixou,
Por cima duma cabana.
A cabana era pequena,
Não cabiam todos os três.
Refrão

[Tendo em conta a falta de rima e o resto do cantar, os dois últimos versos não devem pertencer a esta quadra, mas apenas à seguinte. Se alguém conhecer a quadra completa, agradeço, desde já, a indicação dos versos em falta.]

A cabana era pequena,
Não cabiam todos os três.
Adoraram o Menino,
Cada um por sua vez.

Refrão

Todos três lhe ofereceram
Ouro, mirra e incenso.
Nada mais lhe ofereceram
Porque Ele era o Deus imenso

Refrão

Finda a parte do episódio bíblico (narrado apenas, como se sabe, pelo evangelista Mateus), os cantores passavam à parte dos «Vivas». As quadras eram, geralmente, iguais às que “os pequenos” cantavam. As diferenças mais significativas situavam-se no maior ou menor atrevimento de algumas. E nos subentendidos de namoro com que, por vezes, o grupo procurava mimosear o rapaz ou rapariga “vivado”. A imaginação, o conhecimento das pessoas e (d)as circunstâncias permitiriam um leque mais ou menos variado e rico de «vivas». Quando a família era numerosa, era preciso ter algum engenho, já que não ficava bem repetir a quadra, mudando apenas o nome do felicitado. Registo, por isso, alguns exemplos de quadras, embora nem todas sejam lá muito exemplares. No post anterior, ficaram as «mais sérias».

(iii)        Nós vimos cantar os reis,
Não é só pelo dinheiro,
É pelas maçães da caixa [maçães, forma popular de maçãs]
E chouriços do fumeiro.

Refrão

Viva lá, menino/a [nome],
Çafatinho de *maçães [çafatinho, de açafate] [*pericos],
Debaixo da sua cama,
Lá lhe vão cagar os *cães [*pitos (por pintos)].

Refrão

Viva lá, *senhor [*menino + nome],
Raminho de bem querer,
Pegue na chave da *loja [*adega],
Venha dar-nos de beber.

Refrão

Estes reis não se cantam
Nem a rei, nem a fidalgo,
Mas nós vimo-los cantar,
Por ser ano melhor ano.

Refrão

E chegava-se à parte final, a das “despedidas», como a quadra anterior anuncia. Era, tradicionalmente, com a quadra que registei em (iv), no post anterior.

As versões de cantares de reis (“dos pequenos” - crianças e adolescentes - e “dos grandes” - jovens e adultos) serão, certamente, resultado de contactos entre gerações e e fruto de tradições colhidas e trazidas de outras terras. Nos meus tempos de criança, uma família (numerosa), pouco e pouco imigrada em Braga, de lá trouxe um novo refrão (letra e música) de reis, que, mesmo não tendo feito esquecer o acima transcrito, rapidamente por todos foi aceite e cantado. O resto (letra e música) era igual ao que por cá já era tradição oral e musical. Ei-lo:

     Festas alegres,
     Nós vimos dar.
     Ao Deus Menino,
Vimos cantar.

Então, até um dia destes. E-ternamente retornarei, pois. Mas já sem reis.

2 comentários:

  1. Em dia de Reis
    Deixo aqui ficar
    Sem ser a caneta
    Os meus parabéns
    À alma menina
    DE graça poeta.

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    1. Muito obrigado, Ibel, pela sextilha e pelos parabéns que me dirige. Mas - ai! - quem me daria a «alma menina» e a «graça poeta» que a Amiga, generosamente, me atribui.

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