sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Jogos de Natal - A pinhões e… “bib’ò-belho!”

Os últimos dias do outono e os primeiros do inverno, cá no Mato, sempre foram muito curtos. E nos meus tempos de criança, muito mais. Às cinco da tarde, era já noite. E de manhã, ver-se um palmo à frente do nariz, só aí pelas seis, sete horas. Então, em tempo de chuva, a potes ou molha-tolos, todo o dia parecia noite. A gente, por isso, mal saía do ninho, logo a ele tornava. Nem deixava esfriar a palha.


Não havia eletricidade, evidentemente. As únicas luzes de alumiação eram a fogueira, na pedra da enorme lareira, sob a colossal chaminé; as pequenas e pobres candeias de mão, de vidro ou lata; os médios lampiões e candeeiros, com mangas de vidro contra ventos e aragens, protegidas (ou não) por arames. Tudo a petróleo, onde a torcida era posta de molho, para bem arder, depois, a ponta espevitada. Ou, então, o candeeiro a carboneto (gasómetro, aciteleno) ou, depois, o petromax, também bêbado de petróleo, ou, depois, o candeeiro a gás. Por vezes, quando faltava o combustível ou o raio do aparelho teimava em não acender, deitava-se mão ao coto da vela que sobrara da última procissão delas ou, caso já não houvesse, até uma pinha dava. Tanto brava como mansa. Estas, porém, debulhadas no Natal, eram mais destinadas a implorar, acesas, a proteção de S. Jerónimo e Santa Bárbara, virgem, nas tenebrosas noites dos relâmpagos terríveis e trovões aterradores.
Cá na terra, por conseguinte, também não havia televisão. A cama, por isso, era o palco predileto das diversões noturnas. P’r’a caminha, logo e em força, iam, assim, todos, cedinho. Mas antes, os homens ainda eram obrigados a verificar a cancela da capoeira, se tinha o cravelho metido no sítio – não fosse a matreira raposa encontrar o assalto facilitado! - e as cortes do gado, se bem trancadas. Era preciso, antes ou depois, botar a lavadura ao reco e ao tirone, cão de guarda, e fechar portas e portões, cancelas e postigos. Às vezes, ficava-se um tempito a dar à língua. Era quando eu pedia que minha mãe e/ou minhas irmãs [meu irmão, depois da ceia, parar em casa, tó rola, era o paras] voltassem a (re)contar-me a história do «Zé Grande e Zé Pequeno», a do «João Pescador», a do «João Ratão”, que só depois soube que era a mesma que a da “Carochinha”. No fim de contos, perdão, contas, todas elas são carochas. [Um dia, a elas e eles retornarei. E-ternamente aqui, pois claro!]
Só nas noites de consoada – Natal, Ano Novo (que servia também para correr o velho) e Reis – as coisas tinham outras tarefas e cerimónias. Até cá o puto tinha direito a um dedal de vinho fino, para acompanhar a aletria e as rabanadas. E a uma xicarazinha de café, «Q’uma bez num som bezes, ó!»
Nesses dias, melhor, nessas noites, portanto, as noites eram bem maiores, melhor direi, bens maiores. Enquanto as mulheres preparam a ceia e fazem as doçarias, os homens carregam a lenha que há de manter o lume vivo e a cozinha quente e alumiada. Uma boa cepa de carvalho basta, atrás do lume, potes e panelas, desde que acompanhada por uns bons braçados de canhotas.


Ora, era nestas noites, sobretudo na do Natal, que eu assava as pinhas mansas. Que cheirinho, huuum… Delas retirava – Ai, que pelam! – os tão apetecidos e saborosos pinhões. Comida a meia dúzia da prova, com eles praticava, em casa, os jogos do rapa, também conhecido como da piurra, e do par ou pernão, os quais, depois, no terreiro, havia de jogar com os traquinas da minha igualha.
- “Bai” uma partidinha de rapa ou piurra?
A piurra é, no fim de contas, um pequeno pião. Porém, não é lançada com corda. São as falangetas manuais  do polegar, indicador e/ou médio (ou dos três em conjunto), consoante a habilidade e as competências de cada um, que a põem à rodopiar. Tem também uma forma cónica, mas apresenta quatro lados (faces), planos e lisos. Mede entre 4 e 5 cm do bico ao rabo (ou deste a aquele – a gosto do freguês) e 4 a 9 cm2, em cada lado/face. Cada face tem inscrita uma destas letras - R, T, D, P - iniciais, respetivamente, das formas imperativas Rapa, Tira, Deixa, Põe.

Se não houver pinhões, podem ser utilizados outros prémios (amendoins, figos de seira, uvas passas, avelãs, nozes, amêndoas, pistaches, fisalis…). Por mais saborosos que os suplentes sejam, festas natalícias sem os primeiros… huuumm… não sabem bem. Assim devendo ser, é necessário, para que a brincadeira dure, uma boa manada ou bolso de pinhões. Dos mansos, ou seja, daqueles que se retiram das pinhas mansas, ou seja, daquelas que se colhem nos pinheiros mansos, ou seja, naqueles que têm uma copa ampla e arredondada, assim como um enorme guarda-chuva ou um cogumelo gigantesco. Aqueles a que os botânicos, lá nos seus saberes e dizeres, batizam de “pinus pinea”. E, já agora, o bravo de “pinus pinaster”. [Tem graça, menina Graça! O manso é “pinea”; o bravo “pinaster”. Bonito, sim senhor! Ai, estes botânicos!... Levaram na pinha, com certeza!]

Para sacar os pinhões das pinhas é preciso colocá-las sob(re) calor ou fogo (no meio das brasas ou borralho). Perdem a resina e as escamas (pétalas) abrem-se, como um botão de rosa. É lá dentro, bem escondidos na raiz delas, que eles, como dois gémeos, foram gerados e se desenvolveram. Alguns cuidados (poucos) são, entretanto, de observar. Usar luvas adequadas, isto é, que protejam as mãos de calores, brasas, resinas a arder, cinzas e pós. Os marotos, todavia, trazem sempre presa ao corpo uma película (asa) e vêm embrulhados num pó acastanhado escuro, que suja e enegrece as mãos. Por fim, devido ao calor e ao esforço (embora pequeno, Caros Pequenos) os dedos podem ganhar bolhas. Mesmo com luvas. Fala quem sabe, com saber de muita prática.  
Agora, o jogo propriamente dito. Cada parceiro entra com o mesmo número de pinhões. Dois, por exemplo.


Coloca-os sobre a “mesa” (que pode não sê-lo, propriamente). Começa o jogo quem o grupo indicar. Ou aceitar, se houver autopropostos. No caso de os jogadores serem apenas dois, a vez é alternada. No caso de três ou mais, segue-se o que se encontra à direita do primeiro e, depois, com idêntica prioridade, os restantes. Volta-se ao primeiro e o jogo prossegue tal como foi dito. Enquanto houver pinhões na “mesa”, evidentemente. E vontade de jogar!
Uma partida pode não passar da primeira jogada. Se ao primeiro jogador logo calhar a sorte de ver o R[apa]. Neste caso, o sortudo é o único totalista dessa partida de europinhões. É, aliás, o que sempre acontece a quem esta face da piurra sorri, seja na primeira ou nas restantes jogadas.


E nova jogada, nova partida, qu’esta terminou! Toca a pôr a piurra a rodopiar, que se for colorida, dá imagens bem bonitas. Saiu agora a face D[eixa]. Paciência: não rapa nem tira, mas também não põe, continuando em jogo. Chega, assim, a vez do seguinte. Ora bolas, saiu a face P[õe]. Aqui, há duas hipóteses. Os parceiros é que democraticamente optam por uma. O azarado põe o mesmo número de pinhões (i) com que entrara na partida ou (ii) que se encontra na “mesa”, na altura da jogada. Esta era a minha hipótese preferida. Porque, se saísse o R, também ele não rapava só os pinhões com que entrara, mas todos os que na mesa estivessem. Que bem poderia ser um montão deles. Tira os pinhões com que entrara no jogo apenas a quem sai a face T[ira]. Pelo menos, o investido já cá canta!
- E se jogássemos, agora, o par ou pernão?
Vamos a isso. É assim:
Cada jogador, depois de decidido quem começa, apresenta, em mão fechada (pode usar as duas), mas (por causa de coisas) sempre com os dedos para cima, um número X de pinhões e pergunta ao(s) parceiro(s): “Par ou pernão?

Dadas as respostas, o jogador abre a(s) mão(s) e contam-se os pinhões.
Se 2 ou múltiplos de 2, é par. Ganha quem assim apostou. Se o número for ímpar, ganha quem apostou pernão. Alto lá: ir de mão(s) vazia(s) não vale. É desrespeitar os parceiros. Devia levar um murro. Mas como não passa de (mais uma) brincadeira… Estás perdoado!

Jogo limpo e simples. Simplicíssimo, simplesmente simplex, diria o outro. Basta palpitar e acertar. E se perder, p'r'ò ano há mais.
Foi, certamente, com estes jogos que, por um lado, aprendi a contar e, por outro, a saber usar os dedos, as mãos, a cabeça, etc. e tal. E com elas fazer as brincadeiras confessadas e confessáveis, além das inconfessáveis, obviamente. Todas, mas todas, porém, agradabilíssimas. Sempre! Oh, s’eram!...
Com a crónica da crise (ou a crise crónica) anunciada e em prática, talvez não seja má ideia recuperar, neste Natal, estes velhinhos jogos tradicionais. Sempre atrativos, porque também fazem parte do nosso património (cada vez mais) imaterial. Mesmo sabendo-se que o troféu não passa dum pobre punhado de pinhões.
Aqui deixo, por isso, os manuais de instrução, com votos de Boas Festas. Nos tempos que correm, são os únicos presentes que, ludicamente, posso oferecer. E “bib'ò-belho!”