domingo, 18 de março de 2012

Um Tesouro Património da Humanidade

Há dias, recebi O Tesouro. É um livro. Uma história de ficção literária. Oferta da autora, Maria Clara Miguel, pseudónimo de Isaura Afonseca. Muito obrigado!



Conta-se aqui uma história de «caça ao tesouro». Três adolescentes (dois irmãos, Joana e Pedro - os mais crescidos e cordatos - e um primo, Afonso - o mais miúdo e traquina) acabarão por descobrir, no «velho casarão da família», numas férias de verão, valiosa e surpreendente riqueza. Para o conseguir, o «trio» teve de decifrar uma série de pistas e subtis indicações, deixadas pela bisavó Margarida, em vários locais.
Tudo começa com «uma folha de papel vegetal, dobrada em quatro», encontrada por Pedro, inesperadamente, n’A Ilha do Tesouro. Em «caligrafia gordinha e bem desenhada», Margarida, desafia o leitor a, depois de terminar a narrativa de Stevenson, «embarcar numa aventura» e «descobrir um tesouro estupendo e único». Terá apenas, para o efeito, de «usar bem […] a inteligência e acreditar».
Perante o manuscrito, Pedro reúne com a irmã e o primo. Analisam a mensagem e decidem avançar. Em conjunto, mas sem conhecimento dos adultos. Margarida, cujo «amor pelos livros» era de todos bem conhecido, localiza a «primeira pista»: «sétimo livro da primeira prateleira da minha estante.»
Mas, nos seus livros, ninguém pode mexer. Todos sabiam. Só com autorização de Amélia, a mais velha e respeitada criada do «solar». Margarida, «no leito da morte», confiara-lhe a custódia daquela estante, com o pedido de que nunca fosse alterada, em cada prateleira, a ordem dos volumes. Os livros podiam ser retirados e lidos. Mas, depois, tinham que regressar ao seu «local exato». Havia, assim, no escritório da Margarida, uma «estante proibida», onde ela deixara devidamente organizados os livros de que mais gostara. E o «trio» lá teve de ir pedir à Amélia o tal sétimo livro – As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain – a fim de procurar a pista e decifrá-la. E depois, outras e outras.
 Estas são as personagens protagonistas da narrativa. Incluindo Margarida, ainda que falecida há cerca de duas décadas. E a Amélia, ainda que quase analfabeta, mas com uns «lúcidos noventa e três anos». Eram ambas da mesma idade e tinham vivido, praticamente, sempre juntas. Amélia representa, por isso, não só a memória viva da «sua menina Margarida», mas também a discreta presença da sua forte personalidade.
Quem se entregar à leitura d’O Tesouro verificará, por outro lado, que não faltam referências explícitas a livros (incluindo algumas transcrições) e a termos da mesma «área lexical» (estante, escritório, biblioteca, dicionário, enciclopédia, pesquisas na internete (Google), leitor, leitura, literatura, interpretação…) Além das narrativas de Stevenson e Twain, encontram-se referências e/ou citações de obras de Eça, Camões e Torga, entre outros, mas também de As Mil e Uma Noites e da Bíblia. Ou seja, de «pequenos e grandes tesouros literários» que, selecionados como principais pistas e anotados de sinais pela bisavó, ajudaram os bisnetos a encontrar o valioso e gratificante tesouro. Tesouro que ela, há muito, havia preparado para quem, como ela, também gostasse muito de livros.
É sugestiva a ilustração da capa, de Aurélio Mesquita. Em primeiro plano, as crianças, surpreendidas e concentradas na consulta de um livro. Em fundo, como que diluído em marca de água, o rosto atento de Amélia (ou será Margarida?) velando o «trio» e como que guardando uma repleta estante de volumes.
O Tesouro é, evidentemente, uma narrativa infanto-juvenil. Os seus primeiros destinatários e prioritários leitores serão, por isso, crianças e jovens, com idades compreendidas, aproximadamente, entre os onze e os dezasseis anos. Do secundário, dir-se-á. Mas os adultos, sobretudo aqueles que não deixaram morrer a criança que foram, encontrarão, na leitura deste livro, também uma forma de (e)terno retorno àquela idade do sonho, imaginação e fantasia. De aventuras também, mas sem piratas e grandes perigos. Apenas com desafios intelectuais, morais e sociais.
 Uma permanente intencionalidade pedagógica configura, por isso, esta narrativa. Literária, em primeiro lugar, mas também linguística e gramatical, estética e ética, sem nunca esquecer o social e o afetivo. Não só a nível estritamente familiar, «porque os amigos são a família que nós escolhemos», dizia Margarida. Sem dogmatismos, mas com princípios. Sem tabus, mas com valores. Sem imposições. Com diálogos. Em liberdade, com responsabilidade e solidariedade.
O «estupendo e único» tesouro que os bisnetos de Margarida encontram, depois da decifração das pistas, não se cifra, por isso, tão só e apenas numa valiosa riqueza material. É também o que ele simbolicamente representa: todos os valores humanos e culturais antes referidos e que ao longo da narrativa foram evocados, avaliados, praticados e preservados. Daí que, no fim da história, a partilha do tesouro não fosse apenas entre os elementos do «trio», pois a bisavó exigia que parte da riqueza encontrada  coubesse também a um quarto elemento, aquele, precisamente, que possuía o valioso objeto artístico – caixinha de música - onde Margarida tinha engenhosamente escondido o tesouro.
Este Tesouro é, assim, em última análise, uma bela história de ficção, onde os valores que constituem e definem (deviam definir) o património (material e imaterial) da Humanidade estão presentes e atuantes. Se não como atores, como seus verdadeiros motores.
Se ainda estivesse no ativo, recomendaria, vivamente, aos meus alunos (futuros docentes) de todos os cursos e variantes, O Tesouro da Maria Clara Miguel/Isaura Afonseca. Porque nele também se ensina a ler uma obra literária. Interdisciplinarmente, como sempre deve ser.

Obrigado, Isaura, de novo.