sexta-feira, 25 de maio de 2012

O jogo do pião, há mais de cem anos

Há dias, navegando no mar calmo da Revista Lusitana (1-ª série, 1889-1943), descobri um dos jogos prediletos de toda a rapaziada. Sobretudo daquela que carrega hoje, no lombo, umas boas dezenas de anitos. A descrição encontra-se nas páginas 89 a 92 do vol. XIII, ano 1910. E o seu autor é Cláudio Basto, um médico nascido na cidade de Viana do Castelo que trocou a medicina pelo ensino e pela investigação etnográfica, linguística e literária. Pois este docente e etnógrafo-filólogo vianês conta-nos aí como era, nos princípios do século passado, o jogo do pião.



Vou transcrever, neste post deste e-terno retorno, essa descrição. Atualizarei, porém, a ortografia. O autor, sendo um dos que defendiam, ao tempo, uma nova e única forma de escrita para o português, põe em prática uma proposta de grafia, cujas principais regras vai expondo em notas de rodapé, ao longo do artigo [«Falas e tradições do distrito de Viana do Castelo (I)»; pp. 72-94]. Os discordantes do acordo ortográfico atual deviam ler esta proposta (e as outras, contemporâneas daquela, bem como as tentativas que, com idênticos objetivos, depois se lhes seguiram).
Além do que propõe e pratica na Lusitana, Cláudio Basto também expõe, pratica e a sistematiza a sua proposta na Límia (1910-1912), de que foi cofundador, com João da Rocha e João Páris. A capa é do pintor António Carneiro. No número 1 desta vianesa «Revista mensal ilustrada de letras ciências e artes» (Outubro, 1910, p. 16), o investigador vianês começa a expor a sua proposta. Classifica-a de «ortografia racional, científica, simplificada, etc.», a qual, «com poucas variantes», é a de Gonçalves Viana, que tinha merecido «a aprovação das maiores autoridades em filologia portuguesa bem como de numerosos escritores que em livros e em periódicos a consagraram.» [Nesta citação, respeito a ortografia do original.] Cláudio Basto continuou a expor a proposta nos números seguintes da Límia. Não a concluiu, contudo. Aliás, como se deve saber, nenhuma daquelas propostas vingou. Os brasileiros recusaram-nas.
Mas… adiante, que é preciso lançar o pião.


Cláudio Basto acompanha a descrição do jogo, com notas de natureza linguística, gramatical e etnográfica. Reproduzirei, apenas, as que me parecem indispensáveis à compreensão do jogo propriamente dito.
Ora, pois era assim que se jogava o pião, há cem anos, em Viana do Castelo. E quem diz Viana, diz Minho, ou vice-versa, como diria Pedro Homem de Mello.


«É feita no chão uma circunferência de raio curto. Este pequeno círculo circunscrito é a molha.
Antes de se começar o jogo, fazem-se os ajustes: marcam-se as portas – ponto até onde será preciso levar um pião, dando-lhe de rasteiros, para o jogo ser ganho; combina-se o número de nicos que o vencedor dará no pião do vencido e que alguns rapazes substituem por bolos (palmatoadas geralmente com a mão) ou por cabalotes (= cabaleiras: - andar às cavaleiras); acordam-se as palavras que os jogadores terão de pronunciar a cada fase do jogo, etc.
Vai-se depois marcar a ordem por que os rapazes hão de jogar; chamam eles a isto apelar. Jogam todos a seguir, e o jogador cujo pião ficar na molha ou mais perto dela é o que joga primeiro, e depois os outros pela ordem de distância dos respetivos piões à molha. O pião, que tiver ficado mais longe, fica dentro dela.
O jogo: - O primeiro jogador, embaraçado o pião, joga-o d’altos* com mira a dar nico** no pião que está na molha; depois apara-o, isto é, passa-o a girar para a palma-da-mão, e dá de rasteiros com ele no outro pião, de modo a aproximá-lo das portas.
 Muitos rapazes não querem dar nicos d’altos, e jogam o pião para darem de rasteiros apenas – depois de o apararem, é claro. A vantagem do nico d’altos está em que o jogador, dado o nico, já não perde, mesmo que não apare sequer o pião.
Este primeiro jogador continua a jogar até perder: até não nicar, não dar de rasteiros no pião do chão, ou não dizer as palavras combinadas.
Perdendo, é o seu pião que fica: que é posto no lugar de o que estava no chão.
Depois joga o segundo, etc., – semelhantemente.
Aquele que, por fim, levar o pião inté portas é o que ganha, e dará nesse pião os nicos dos ajustes; ou, em vez de nicos, dará bolos ou andará a cavalo, consoante o ajustado.
Alguns rapazes, para se não deteriorar o pião com que jogam, têm outro para os nicos, ao qual chamam pandelha (= pandeilha).


O pião tem um ferrão ou dois ferrões. Nos que só têm um, a substituir o segundo ferrão há uma saliência da mesma madeira a que chamam selo ou carapuça. Há ferrão de mesa, de prego, de parafuso. O de mesa tem um pratozinho que o impede de se afundar.
Em geral os rapazes não gostam dos piões com carapuça, e, quando encontram algum jogador com um pião desses, tiram-lho e lançam-no fora dizendo:
O pião que tem selo
bai p’rà casa do Campelo.

São variados os ditos que se ajustam para as operações do jogo. Ao jogarem o pião, dizem muitos:
À molha, à molha
quem quiser que ponha

e outros:
Lá bai o Fabiom (Fabião).

Quando o pião é levado de rasteiros para as portas, dizem:
Inté portas
E quando está próximo delas:
À beira da barra
se perde o nabio

- Quando o pião, ao ser deitado, fica suspenso da baraça por nela se enrodilhar o ferrão - dizem que o pião faz figo maduro.
- Quando o pião gira no mesmo ponto, diz-se que dorme, e chamam-lhe nairinho; os rapazes comentam então: - que naireza!
[…]
- Ao pião que anda a descrever curvas, balanceando-se, chamam esgaravelhão.
- Às lascas de pião tiradas com os nicos chamam pau santo. De troça, os garotos cospem nesses bocados de madeira e enterram-nos dizendo: “pau santo p`ra nascer p´rò ano”.»

Vamos, então, a uma partidinha?... Eu ainda sou rapaz, pelos vistos, para o embaraçarlançar, aparar, pô-lo a dormir e ainda dar por cima umas boas nicadas...
Com mais assim, menos assim, era também assim-assim que se jogava (a)o pião, nos meus tempos de criança, cá no Mato.
Sim, sim!...

* Também se joga o pião por baixo, mas neste jogo não convém, pois não é possível dar nicos nem é fácil apará-lo, desta forma.
** Nico é pancada com o ferrão do pião. Noutras partes diz-se nica.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Danadas daninhas 003





Os entendidos (botânicos) chamam-lhe «passiflora alata». Cá no Mato e circunvizinhas, «cinco chagas de Cristo». Eu, sem palavras: ao vê-la, ao fotografá-la, ao passá-la para o Windows, ao revê-la.
Um deslumbramento. E assim vou ficar.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Danadas daninhas 002

Quem caminhar (ou mesmo apenas andar) apressado, pelos caminhos das aldeias, não terá descoberto, certamente, esta pequeníssima flor [Já verão a razão desta cor.] Daninha, como o "botão doiro", embora desconheça os eventuais danos que a danada possa causar. Julgo que nenhuns, pelos vistos.
Tem uma corola cujo diâmetro mede menos de 1 centímetro – garanto. Tímida e frágil, encontra-se escondida entre as ervas circunvizinhas. Vê-se em valados, muros e em terrenos cultivados e incultos (que agora são cada vez mais). Cá no Mato é, simplesmente, mais uma florinha bonita de mais uma erva gordinha sem interesse. Anónima, portanto. Nem sequer «morrião» lhe chamam. E ainda bem. Livra! Que falta de gosto!... Os botânicos batizaram-na de «anagallis arvensis», vá lá (isto é, ao latim) saber-se porquê. Pois bem: proponho que se chame "botão de camarão", pronto!

Quem quiser ver e sentir, ao vivo, a simplicidade e, por isso*, a beleza desta minúscula flor, de ora em diante chamada "botão de camarão" - como registado aqui foi - só tem três coisas a fazer. Primeira: descobri-la. Segunda: pôr-se de cócoras. Terceira: observá-la, com vagares e atenções.
E-terna-mente. Assim:


E com retorno, se for preciso.


* «Quero a delícia  de poder sentir as coisas mais simples» - Manuel Bandeira

domingo, 13 de maio de 2012

Danadas daninhas 001


Danadas daninhas 001


É um facto. Isto, assim, não pode continuar. Chamar jardim a isto...


Estas flores amarelas são silvestres ou campestres. Mas eu gosto destas pequenas. Destas e de outras como elas, como verão, e com idênticas propriedades. Porque, vistas de perto e sem pressas, têm realmente um corpinho bem feito, umas formas engraçadas e atraentes. Até os insetos gostam! Uns, para lhes chuparem o pólen.


Outros, para no seu (delas) gineceu se sentirem confortáveis e confortados.


Mas amanhã, lá terá que ser. Vou meter-lhes a máquina da relva, antes que preciso seja a roçadoira. Mas pede o registo para memória futura (só até 2013) que deixe aqui mais umas fotografias destas daninhas «enfestantes». Que é como quem diz, onde pegam, fazem do sítio uma “festa” permanente. Nunca mais nos vemos livres delas, destas danadas infestantes. Daninhas!



Os botânicos chamam-lhe, cientificamente, isto é, em latim, «ranunculus repens». A sua corola atinge, quando crescidas [medi-a eu], à volta de 5 cm de diâmetro. Cá no Mato, chamamos-lhes, simplesmente, “florinha amarela”. Como a outras que da mesma cor são e para as quais nunca arranjámos água de batismo que chegasse. Noutras terras [vale a pena ver o sítio] levam nomes como «botão de oiro», «erva belida», «flores de quaresma» e «ranúnculo rasteiro». E outros, com certeza.
“Botão doiro”! Está bem! Concordo. É bonito! Fica aprovado. Publique-se! Ouçam aí, rapazes: aqui no Mato, “botão doiro” é como se passa a chamar a esta florinha amarela. Mas para que não haja mais confusões, botões de oiro já não são aquelas tacholas de metal brilhante que os srs. ministros e outros –istos usam para apertar os punhos da camisa. Esses passam a chamar-se “botões de latão”. Ou será que nem todos nós vamos ficar uns pobrezinhos?!... Ou será antes pobretanas? [- Pobre? - O tanas!]

Andam aqui sinais mais ou menos visíveis de outras pequenas, ainda mais miúdas. Vou atirar-me também a elas, um dia destes. Já não preciso de as ter debaixo d’olho. Já as tive, para o devido registo. Amanhã, também estas safadas serão ceifadas pela vertiginosa ventoinha da máquina. Como todas as outras daninhas danadas.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Metamorfoses

Metamorfoses de um lírio amarelo, num só dia de maio quente

De manhã, estava assim:


Durante a tarde, ao princípio, assim e.................................. a meio da tarde, assim:

E ao fim da tarde (19h +/-), assim ou ................................. assim:

Mas ao ir deitar os bichos (cerca das 20,30h, anoitecendo), não é que já estava
                  assim e.......................................................... assim:

E amanhã, como estará?...

Se tudo mudasse assim tão facilmente!

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Metamorfoses


Morango imprevisto (pelo produtor).


Depois do limão, chega-me ao prato este morango. Ora façam o favor de apreciar.


Também aqui, seja visto de que lado for, a sua estranha forma mantém-se. Ou agrava-se?...

Já agora (só para quem não saiba), os morangos também são “filhos” de flores. Os morangueiros [os de cá da casa, pelo menos] começam a florir em Março.


Os humanos não são, contudo, os únicos "bichos" que gostam desta fruta, tenha ela a forma que tiver. Há, com efeito, outros, bem mais atrevidos, que também não lhes resistem – os melros.
Há que protegê-los, por isso, com rede, dessas aves de bico amarelo (turdus merula), cujo canto, trinado, é lindíssimo. É o que lhes vale. Mal começam a ganhar cor, logo os pobres morangos são papados por eles. E a gente cá fica a chupar no dedo.


Quanto a fruta e suas metamorfoses, hoje fico-me por esta. Mostrar-lhes-ei, depois, a estranha forma de uma cereja. Se os melros, entretanto, não se atirarem também a elas.

terça-feira, 1 de maio de 2012

As maias começam nas vésperas de maio


De facto, a tradição já não é o que era. As maias [ou maios] que, no meu tempo de criança, cá no Mato, enfeitavam, a bem dizer, todas as entradas das habitações (paredes, janelas, postigos, portas, portadas, portões) e propriedades rurais (eidos, campos, leiras, bouças, lameiros), cortes gado e cortelhos e capoeiras (cancelas e cancelinhas, portelos e portinholas), a par de meios de transporte e trabalho (carros de bois, jugos, carroças, cabrestos, automóveis, camiões, carrinhas, “carreiras”), já não se encontram, com a abundância, variedade e beleza artesanal de há meio século.
Hoje, ao dar a minha habitual caminhada, fui de olho nelas, as maias, claro. Encontrei apenas uma digna desse nome.



Aproxima-se, como se vê, das antigas. Essas eram construídas por mulheres e raparigas, nas vésperas do dia um de maio. Eram feitas ao despique, em segredo, por isso. E colocadas ao fim da tarde do dia 30 de abril, depois do sol-posto, como mandava a tradição, inspirada num episódio evangélico de que, mais abaixo, falarei.
As maias eram “roscas” floridas. Com palha de centeio, que não era completamente triturada pelos malhos, apenas a parte das espigas. Era o colmo. Com ele, um pouco humedecido, faziam-se cordas para atar, por exemplo, fardos de palha milha. Era também utilizado (seco, claro) para encher colchões e  como tochas (alumieiros).  Pois era com uma boa manada de colmo que se fazia-se roda, com diâmetro variável (cerca de 30 cm, geralmente). Depois, escolhiam-se as flores e os “verdes”, que eram enfiados e presos (umas e outros) na “rosca”. Só de um lado, porque o outro ficava encostado à parede, por cima ou na própria porta principal, por baixo ou por cima da janela, na padieira do portão, entradas principais da casa e, por isso, voltadas para o lado de onde os vizinhos vissem. Vaidadezinhas! Justificáveis, pois claro!
Há 50 anos, mais coisa menos coisa, também já se colocavam giestas floridas, sobretudo amarelas, que por esta altura do ano estão carregadinhas de flores. Aliás, não havia tempo nem vagares para se fazer e pôr uma “rosca” em cada entrada. Ele há tantas!

Hoje, por isso, nas entradas das casas (e não de todas), o que vi foi, quase exclusivamente, ramos de giestas amarelas, uns maiores outros menores, uns mais cuidadosamente colocados, outros simplesmente pendurados. Mas a crença e a superstição de que as maias (“roscas” e giestas) protegem as propriedades (urbanas e rústicas) e seus proprietários de toda a espécie de males e malefícios continuam relativamente vivas. Sobretudo as habitações. Não encontrei entradas de propriedades rústicas “maiadas”.

Mas encontrei maias em alguns tratores, os atuais carros de bois, puxados, porém, por potentes cavalos que se alimentam, não de palha, mas de gasóleo, cada vez mais caro, como os olhos da cara.


A tradição tem raízes na narrativa bíblica da fuga da Sagrada Família.
Quando Herodes mandou procurar Jesus, certo dia, ao fazer-se noite, Jesus e seus pais foram acolhidos numa pequena casa. Os soldados do malvado rei iam atrás do Menino, para o matar, inspecionando todas as habitações. Como, porém, depois do sol-posto, a lei não os deixava entrar nelas, marcaram, com um ramo na porta, a última que visitaram. Na manhã seguinte, ao retomarem a inspeção, todas as outras portas tinham também um ramo de flores. E…
Era esta a explicação de minha mãe. Queria lá ela saber de ancestrais ciclos festivos, ritos e rituais pagãos e da sua cristianização pela sua santa madre igreja. Isso é coisa para quem não tem mais com que gastar o tempo, filho.
Como aquele que, não obstante respeitar a tradição, prefere, em vez de pendurar ramos de giesta nas portas, cultivá-las no seu jardim. Sim senhor! Bem bonitas!


Assim sendo, até à próxima. Com mais fruta estranha. Que ela, este ano, pelos vistos, está maluquinha de todo.