sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Jogos de Natal - A pinhões e… “bib’ò-belho!”

Os últimos dias do outono e os primeiros do inverno, cá no Mato, sempre foram muito curtos. E nos meus tempos de criança, muito mais. Às cinco da tarde, era já noite. E de manhã, ver-se um palmo à frente do nariz, só aí pelas seis, sete horas. Então, em tempo de chuva, a potes ou molha-tolos, todo o dia parecia noite. A gente, por isso, mal saía do ninho, logo a ele tornava. Nem deixava esfriar a palha.


Não havia eletricidade, evidentemente. As únicas luzes de alumiação eram a fogueira, na pedra da enorme lareira, sob a colossal chaminé; as pequenas e pobres candeias de mão, de vidro ou lata; os médios lampiões e candeeiros, com mangas de vidro contra ventos e aragens, protegidas (ou não) por arames. Tudo a petróleo, onde a torcida era posta de molho, para bem arder, depois, a ponta espevitada. Ou, então, o candeeiro a carboneto (gasómetro, aciteleno) ou, depois, o petromax, também bêbado de petróleo, ou, depois, o candeeiro a gás. Por vezes, quando faltava o combustível ou o raio do aparelho teimava em não acender, deitava-se mão ao coto da vela que sobrara da última procissão delas ou, caso já não houvesse, até uma pinha dava. Tanto brava como mansa. Estas, porém, debulhadas no Natal, eram mais destinadas a implorar, acesas, a proteção de S. Jerónimo e Santa Bárbara, virgem, nas tenebrosas noites dos relâmpagos terríveis e trovões aterradores.
Cá na terra, por conseguinte, também não havia televisão. A cama, por isso, era o palco predileto das diversões noturnas. P’r’a caminha, logo e em força, iam, assim, todos, cedinho. Mas antes, os homens ainda eram obrigados a verificar a cancela da capoeira, se tinha o cravelho metido no sítio – não fosse a matreira raposa encontrar o assalto facilitado! - e as cortes do gado, se bem trancadas. Era preciso, antes ou depois, botar a lavadura ao reco e ao tirone, cão de guarda, e fechar portas e portões, cancelas e postigos. Às vezes, ficava-se um tempito a dar à língua. Era quando eu pedia que minha mãe e/ou minhas irmãs [meu irmão, depois da ceia, parar em casa, tó rola, era o paras] voltassem a (re)contar-me a história do «Zé Grande e Zé Pequeno», a do «João Pescador», a do «João Ratão”, que só depois soube que era a mesma que a da “Carochinha”. No fim de contos, perdão, contas, todas elas são carochas. [Um dia, a elas e eles retornarei. E-ternamente aqui, pois claro!]
Só nas noites de consoada – Natal, Ano Novo (que servia também para correr o velho) e Reis – as coisas tinham outras tarefas e cerimónias. Até cá o puto tinha direito a um dedal de vinho fino, para acompanhar a aletria e as rabanadas. E a uma xicarazinha de café, «Q’uma bez num som bezes, ó!»
Nesses dias, melhor, nessas noites, portanto, as noites eram bem maiores, melhor direi, bens maiores. Enquanto as mulheres preparam a ceia e fazem as doçarias, os homens carregam a lenha que há de manter o lume vivo e a cozinha quente e alumiada. Uma boa cepa de carvalho basta, atrás do lume, potes e panelas, desde que acompanhada por uns bons braçados de canhotas.


Ora, era nestas noites, sobretudo na do Natal, que eu assava as pinhas mansas. Que cheirinho, huuum… Delas retirava – Ai, que pelam! – os tão apetecidos e saborosos pinhões. Comida a meia dúzia da prova, com eles praticava, em casa, os jogos do rapa, também conhecido como da piurra, e do par ou pernão, os quais, depois, no terreiro, havia de jogar com os traquinas da minha igualha.
- “Bai” uma partidinha de rapa ou piurra?
A piurra é, no fim de contas, um pequeno pião. Porém, não é lançada com corda. São as falangetas manuais  do polegar, indicador e/ou médio (ou dos três em conjunto), consoante a habilidade e as competências de cada um, que a põem à rodopiar. Tem também uma forma cónica, mas apresenta quatro lados (faces), planos e lisos. Mede entre 4 e 5 cm do bico ao rabo (ou deste a aquele – a gosto do freguês) e 4 a 9 cm2, em cada lado/face. Cada face tem inscrita uma destas letras - R, T, D, P - iniciais, respetivamente, das formas imperativas Rapa, Tira, Deixa, Põe.

Se não houver pinhões, podem ser utilizados outros prémios (amendoins, figos de seira, uvas passas, avelãs, nozes, amêndoas, pistaches, fisalis…). Por mais saborosos que os suplentes sejam, festas natalícias sem os primeiros… huuumm… não sabem bem. Assim devendo ser, é necessário, para que a brincadeira dure, uma boa manada ou bolso de pinhões. Dos mansos, ou seja, daqueles que se retiram das pinhas mansas, ou seja, daquelas que se colhem nos pinheiros mansos, ou seja, naqueles que têm uma copa ampla e arredondada, assim como um enorme guarda-chuva ou um cogumelo gigantesco. Aqueles a que os botânicos, lá nos seus saberes e dizeres, batizam de “pinus pinea”. E, já agora, o bravo de “pinus pinaster”. [Tem graça, menina Graça! O manso é “pinea”; o bravo “pinaster”. Bonito, sim senhor! Ai, estes botânicos!... Levaram na pinha, com certeza!]

Para sacar os pinhões das pinhas é preciso colocá-las sob(re) calor ou fogo (no meio das brasas ou borralho). Perdem a resina e as escamas (pétalas) abrem-se, como um botão de rosa. É lá dentro, bem escondidos na raiz delas, que eles, como dois gémeos, foram gerados e se desenvolveram. Alguns cuidados (poucos) são, entretanto, de observar. Usar luvas adequadas, isto é, que protejam as mãos de calores, brasas, resinas a arder, cinzas e pós. Os marotos, todavia, trazem sempre presa ao corpo uma película (asa) e vêm embrulhados num pó acastanhado escuro, que suja e enegrece as mãos. Por fim, devido ao calor e ao esforço (embora pequeno, Caros Pequenos) os dedos podem ganhar bolhas. Mesmo com luvas. Fala quem sabe, com saber de muita prática.  
Agora, o jogo propriamente dito. Cada parceiro entra com o mesmo número de pinhões. Dois, por exemplo.


Coloca-os sobre a “mesa” (que pode não sê-lo, propriamente). Começa o jogo quem o grupo indicar. Ou aceitar, se houver autopropostos. No caso de os jogadores serem apenas dois, a vez é alternada. No caso de três ou mais, segue-se o que se encontra à direita do primeiro e, depois, com idêntica prioridade, os restantes. Volta-se ao primeiro e o jogo prossegue tal como foi dito. Enquanto houver pinhões na “mesa”, evidentemente. E vontade de jogar!
Uma partida pode não passar da primeira jogada. Se ao primeiro jogador logo calhar a sorte de ver o R[apa]. Neste caso, o sortudo é o único totalista dessa partida de europinhões. É, aliás, o que sempre acontece a quem esta face da piurra sorri, seja na primeira ou nas restantes jogadas.


E nova jogada, nova partida, qu’esta terminou! Toca a pôr a piurra a rodopiar, que se for colorida, dá imagens bem bonitas. Saiu agora a face D[eixa]. Paciência: não rapa nem tira, mas também não põe, continuando em jogo. Chega, assim, a vez do seguinte. Ora bolas, saiu a face P[õe]. Aqui, há duas hipóteses. Os parceiros é que democraticamente optam por uma. O azarado põe o mesmo número de pinhões (i) com que entrara na partida ou (ii) que se encontra na “mesa”, na altura da jogada. Esta era a minha hipótese preferida. Porque, se saísse o R, também ele não rapava só os pinhões com que entrara, mas todos os que na mesa estivessem. Que bem poderia ser um montão deles. Tira os pinhões com que entrara no jogo apenas a quem sai a face T[ira]. Pelo menos, o investido já cá canta!
- E se jogássemos, agora, o par ou pernão?
Vamos a isso. É assim:
Cada jogador, depois de decidido quem começa, apresenta, em mão fechada (pode usar as duas), mas (por causa de coisas) sempre com os dedos para cima, um número X de pinhões e pergunta ao(s) parceiro(s): “Par ou pernão?

Dadas as respostas, o jogador abre a(s) mão(s) e contam-se os pinhões.
Se 2 ou múltiplos de 2, é par. Ganha quem assim apostou. Se o número for ímpar, ganha quem apostou pernão. Alto lá: ir de mão(s) vazia(s) não vale. É desrespeitar os parceiros. Devia levar um murro. Mas como não passa de (mais uma) brincadeira… Estás perdoado!

Jogo limpo e simples. Simplicíssimo, simplesmente simplex, diria o outro. Basta palpitar e acertar. E se perder, p'r'ò ano há mais.
Foi, certamente, com estes jogos que, por um lado, aprendi a contar e, por outro, a saber usar os dedos, as mãos, a cabeça, etc. e tal. E com elas fazer as brincadeiras confessadas e confessáveis, além das inconfessáveis, obviamente. Todas, mas todas, porém, agradabilíssimas. Sempre! Oh, s’eram!...
Com a crónica da crise (ou a crise crónica) anunciada e em prática, talvez não seja má ideia recuperar, neste Natal, estes velhinhos jogos tradicionais. Sempre atrativos, porque também fazem parte do nosso património (cada vez mais) imaterial. Mesmo sabendo-se que o troféu não passa dum pobre punhado de pinhões.
Aqui deixo, por isso, os manuais de instrução, com votos de Boas Festas. Nos tempos que correm, são os únicos presentes que, ludicamente, posso oferecer. E “bib'ò-belho!”

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Isto é um sarilho de carvalho


Com esta imagem e o comentário de que se tratava do brinquedo de cocras que, em criança, mais gostava de fazer e com ele brincar, terminei o post anterior. E prometia, para este, o “manual” da sua construção e uso. Pois cá vai.
A feitura deste brinquedo é muito simples e fácil. Basta manusear os materiais com algum cuidado. Exigências das suas dimensões, constituição e fragilidades.
Vamos, então, à receita. Os ingredientes necessários à confeção deste sarilho propriamente dito são os seguintes:
a)  1 cocra (bugalho) grande, de preferência  ainda não perfurada pelo bicho (insecto; ver post anterior).
b) 2 pequenos paus, com 2 ou 3 cm de diâmetro, comprimento igual de 8 a 10 cm e quanto mais direitinhos melhor.
c) 1 pau, um pouco mais grosso que os anteriores, com 15 a 20 cm de comprimento e também direitinho.
d) 1 cúpula grande de landra (bolota).
e)  Fio (ráfia, lã, algodão, sisal… eu utilizei lã velha) qb.
f) 2 forquetas.


Agora, a confeção do sarilho. Se não tiver um carvalho à mão, use outros paus. Não é por isso que o sarilho deixa de ser de carvalho, pois os seus elementos principais são a cocra e a cúpula, produzidos por esta árvore. [Um parêntesis para dizer que à cúpula chamava eu e os colegas de brincadeiras, carapuça (da landra, claro); a cúpula, nesse tempo, não fazia parte do meu léxico activo.]
Para facilitar a execução da obra, limpe os paus, com um canivete ou faca (não se fira), de nós, elos, rebentos ou saliências. Retire-lhe ou alise também a casca, sobretudo se for rugosa. Quanto mais lisinhos e redondos eles forem, melhor será a perfuração da cocra, como a seguir se descreve.
Ora, então, escolha a cocra. A maior, pois ela vai suportar a injeção dos paus. Atravesse-a, no sentido base-topo (ou topo-base), com o pau referido em c), depois de limpo e liso como antes foi indicado. A casca da cocra é, como sabe, muito frágil. Utilize, por isso, uma pequena verruma, chave de fendas em cruz (todas, porém, de espessura ligeiramente inferior ao pau), ponta de tesoura ou canivete, para começar a abrir os dois buraquinhos por onde quer meter o dito cujo [Fig. 3]. Ele deve ficar bem ajustado à cocra, sem ficar lasso ou solto. Fixe a cocra a uma distância aproximada de 5 cm de uma das extremidades do pau. Ela não pode rodar em torno dele. Caso isso aconteça, o sarilho não ensarilha. O melhor é usar outra cocra e começar de novo. Ou então aplique, nos orifícios, depois do pau enfiado, umas gotas de cola branca (de madeira). Deixe secar, para ganhar consistência. Acaba de fazer o eixo do sarilho [Fig. 4].


Agora, atravesse a cocra com os 2 pauzinhos, indicados em b), formando ângulos retos entre si e em relação ao eixo. [Fig. 5] Deve ter os mesmos cuidados na abertura dos buraquinhos e no atravessamento da cocra. Conseguiu? Ótimo. Acaba de fazer os braços ou manípulos do sarilho [Fig. 6].


Uma cúpula (carapuça) de landra, indicada em d), era (é) o balde do sarilho. Abra dois pequeninos orifícios, diametral e simetricamente opostos, na borda da carapuça [Fig. 7]. Com cuidado, para não quebrar nem a carapuça nem a borda. Se tal desastre se verificar, pegue noutra e recomece. Aí não há cola que lhe valha. Faça-lhe, depois, uma asa (pega). Pode ser um fino arame, curvando-o em arco, e dobrando-lhe cada uma das extremidades nos buracos do balde [Fig. 8]. Ou, então, enfie o fio, indicado em e), nos referidos orifícios, e com ele faça a asa. Em seguida, prenda uma extremidade do fio à curva do balde e a outra ao eixo do sarilho, onde o enrolará.



E pronto. Está feito o sarilho [Fig. 9]. Vê como não foi sarilho nenhum fazer este sarilho de carvalho?
Mas este brinquedo, pobre e frágil réplica, em miniatura, de um real e duro instrumento de trabalho, para funcionar, precisa dos suportes, onde toma apoio e onde roda. Pegue, então, numa tesoura da poda ou num pequeno serrote, vá ao carvalho (ou outra árvore) e corte um ramo em que haja, pelo menos, duas forquetas. Uma forqueta é um pequeno galho ramificado em V, numa extremidade. A altura, da base do pau ao vértice das forquetas, é qb. Depende do tamanho do trabalhador. Enterre-as, mais ou menos, conforme a estatura do sarilheiro. Coloque o sarilho nas forquetas [Fig. 10]. Agora, sim, já pode, de balde, começar a tirar água do poço e a dá-la sem caneco. Se o poço não estiver seco, claro.


Em criança, quando me dava aos sarilhos, fazia uma pequena cova no chão, geralmente nos campos ou bouças para onde meus pais me obrigavam levar o gado a pastar e aí vigiá-lo de fugas inesperadas ou de assaltos à horta. (Ai aquelas tourinhas galegas, tão ternas e mansas, tão lindas, que um dia, ao serem vendidas, tanto me fizeram chorar!…). Espetava, depois, as forquetas junto do poço. Deitava-lhe água lá para dentro, que ia buscar na concha das mãos ao rego. Santa ingenuidade, santa paciência. Até que alguém (pai, mãe, irmãos, vizinho…), me gritava: «Ó Dabide, olhò gado nas coubes!...» Depois, era só dar ao sarilho. Primeiro, desensarilhando-o, para baixar o balde vazio, até ele bater na água e ficar cheio dela Fig. 11]. Depois, ensarilhando para cima, fazendo subir o balde até à boca do poço. Aqui chegado, é preciso segurar bem o sarilho, com mão firme num dos seus braços, enquanto com a outra se apanha o balde e se desvia para a borda do poço [Fig. 12]. E a água despejava-a no local desejado e com as finalidades que a imaginação se encarregava, cada vez, de inventar. Sempre baseada, porém, na realidade rural mais conhecida e vivida: regar a horta e plantas, bebedouro de galinhas, porcos e outra bicharada de maior porte. Ou para as lides da cozinha. Ou mesmo para matar a sede humana.

Para tornar – HOJE – este meu brinquedo infantil mais realista e poder arrumá-lo na estante dos meus afetos, apliquei-lhe um poço móvel. Peguei, como se vê, numa pequena lata [ele há tantas (de tinta, de alimentos…) e tantos com tanta!], cujo inexorável destino era o lixo, fixei-lhe as forquetas com arame e enfiei-lhe o sarilho. Com ele retornei aos meus tempos de guardador de vacas (poucas) e de sonhos (muitos, tantos), como o Constantino do Redol.
«É uma beleza!» - exclamou o sarilheiro. «Posso ficar no retrato?» – perguntou ao ignoto artesão.

E-ternamente retornarei. Por ele. Por isso.
 

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Isto é do carvalho


Sim, também. Nem só bolotas se encontram nesta árvore, nem era só com landras (nome que lhes dava, em criança) que fabricava apitos [ver post anterior]. Outros brinquedos e brincadeiras também, como hei de mostrar, a seguir, enquanto postar à sombra do carvalho. [Landra, já agora, é forma popular (corruptela fonética) de lande e/ou glande. Digo eu…]
Para quem não saiba ou já se esqueceu, as formas ligeiramente esféricas que se veem nas imagens são bugalhos. Do meu carvalho, único no meu jardim. Ali nasceu, espontaneamente, e lá vai crescendo e engrossando, enquanto deixar. Qualquer dia, porém, vai abaixo.
 Aos bugalhos, chamava-lhes, em puto, cocras. Como, aliás, a outra rapaziada conterrânea e contemporânea. [Cocra, já agora, não entra nos dicionários. Mas registam (nem todos) cócora. O Morais, por (bom) exemplo, diz que cócora significa «castanha cozida, que se não descascou parcialmente, como é costume.» A parecença da cor e forma terão (e)levado o bugalho a cóc(o)ra. Mas, cá para mim, a onomatopeia é também de considerar. Com efeito, o efeito que, quando seco, o bugalho produz ao bater numa superfície dura, saltitando, como bola, é som parecido com o nome: cóc(o)ra, cocra, cocr… Que, aliás, também se ouve, quando batemos com o(s) nó(s) do(s) dedo(s) em cabeça, porta, tampa, lousa… Cocra é, assim, forma popular de cocre ou croque, também onomatopeias, como se sabe e sente.]
Retorno às cocras. Elas apresentam, em geral, uma forma esférica. Umas, porém, são mais redondinhas que outras, como se viu acima e melhor se nota abaixo [Fig. 1].



As esféricas são, porém, mais pequenas. Serviam-me de berlinde - aquele jogo em que os putos procuram meter a bolinha nos buraquinhos feitos no terreno. E, como estratégia defensiva, atacar os berlindes dos concorrentes, afastando-os do dito cujo. [Vá ao Google, se quer saber mais - descrição e imagens - sobre este jogo.] As outras cocras são maiores e têm, pela coroa que ostentam, um certo ar principesco [Fig. 2]. Lembram o atarracado Lord Farquaad do Shrek. Quem não conhece?
Com elas também brinquei (e quanto, meu caro), fazendo bonecos, moinhos e sarilhos de água, e também apitos. Umas e outras cocras, porém, são frágeis e, por isso, efémeras. Mas as coroadas ainda mais. Nos galhos e sobretudo nas nossas mãos. Ou nos pés, porque, à falta de bola de jeito (de trapos enfiados numa meia, ou de borracha – luxo raro – de couro, nem pensar) até uma cocra dava para uma rápida partida de futebol. Mas só enquanto os dedos dos pés descalços não começassem a sangrar e a doer muito, pelos chutos que dávamos também na terra, pedras, chancas e canelas de adversários e/ou até parceiros. Ou então, quando o jogo passava a luta livre e o choramingas ia queixar-se à mãezinha. Ou quando se avistava a patrulha da Guarda.
Nessas partidas, todos éramos, ao mesmo tempo, jogadores, treinadores e árbitros (e só um ou outro dono da bola e, por isso, da partida também). Aquilo era tudo ao molho e siga a rusga. O importante era meter o bugalho no sítio - a baliza sem rede dos outros - formada por duas pedras, ou uma pedra e um pau, ou a dita e uma árvore existente no campo pelado. A largura media-se a pé. A altura, com trave imaginada, a olho. De repente, o tamanho da baliza reduzia-se. Se as pedras e o poste fossem leves, como quase sempre, claro.
Mesmo no carvalho, depois do bichinho lhe sair do ventre, pelo orifício que lhe faz na casca, tanto nas coroadas [Fig. 3] como nas redondinhas [Fig.4], a cocra pouco mais tempo se mantém agarrada ao galho.


O nauta leitor sabe que as cocras (bugalhos) não são os frutos do carvalho. Frutos dele são, como sabe, as bolotas, as landras cá da terra. As cocras são excrescências que o carvalho (como o sobreiro e a azinheira) forma e desenvolve, contra invasores – as vespas, em particular [Fig. 5]. Estes irreverentes e indiscretos bichinhos alados semeiam ovos pelos ramos da árvore, que, para se defender dos efeitos colaterais do ataque, segrega uma substância com que envolve e isola cada um deles. Surgem, deste modo, as cocras. Cortando-se uma, ainda não perfurada, lá está o ovito ao centro [Fig. 6].


Entretanto, no interior do bugalho, o ovo passa pelas metamorfoses conhecidas: larva, ninfa e inseto . Alimentam-se do recheio da excrescência (rica em tanino, diz-se). Atingida a última fase, a vespa perfura-lhe a casca e, asas para que vos quero. Ala!, que estão ali umas lindas flores e uns frutos deliciosos à espera duma boa ferroada. Mas elas – cuidado! - também gostam de pele humana.
 Já vai longo este post, à volta das cocras (bugalhos). Mas também elas (eles) são do carvalho. Repito: com elas (eles) brinquei, em criança. Não duravam muito, porém, os brinquedos com elas (eles) feitos. Um dia, uma tarde… quem dera! As mais das vezes, apenas o momento da construção e o instante da deslumbramento. Fugazmente, como as brincadeiras. Como tudo. Ficaram-me, contudo, as lembranças. E o afeto ao (e)feito: transformar objectos naturais em culturais.
O brinquedo de cocras que, sentado ou de cócoras, mais gostava de fazer e com ele brincar era o seguinte [Fig. 7], aqui fotografado novinho em folha, ainda.



O “manual” da sua construção e uso fica, todavia, para a próxima.
E-ternamente retornarei, por isso.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Apitadelas 001

Apito de Cúpulas de Bolota





A primeira apitadela que se dá com este apito não é fácil. É necessário ajustar a posição dos lábios ao orifício e soprar com alguma intensidade. O som produzido (simples ou trinado) será tanto mais perfeito e forte, quanto melhor for o ajustamento da posição.
É assim: com a boca fechada, faz-se coincidir a ponta dos lábios com o orifício (Fig. 1). Em seguida, roda-se o apito para baixo (lábio inferior), de modo a fazer (mais ou menos) um ângulo recto com os lábios (Fig. 2). Nesta posição, encosta-se bem o apito ao lábio inferior. Alonga-se um bocadinho o lábio superior, para que o ar penetre totalmente no orifício, e sopra-se. Et voila!...


Se não apitar à primeira, não desista. Insista. Que dar apitadelas com um instrumento destes também requer paciência, treino, persistência e jeito. E verá como consegue. É como o coçar…
Mais fácil é a sua construção. Escolha, de entre as cúpulas recolhidas, duas com diâmetros ligeiramente diferentes. A menor deve entrar um pouco na maior (Figs. 3 e 4).


Em seguida, faça, com um canivete (ou à unha), um recorte circular nos bordos de cada cúpula (Fig. 5). Depois, encaixe uma na outra, fazendo com que os recortes formem o orifício (Fig. 6).


Este apito pode produzir som simples ou trinado. Para conseguir este último efeito, introduza um pequeno objeto com forma mais ou menos esférica (pedrinha, bolotinha, bugalho…) no instrumento. A dita esfera, porém, deve ter um de diâmetro ligeiramente superior ao orifício (Figs. 7). Caso contrário, ao soprar, ela esgueira-se pelo buraquinho e leva com ela no nariz. Feche as cúpulas (Fig. 8). Para tornar mais resistente a união, pode deitar cola (branca, de madeira), no bordo da cúpula menor.


E pronto. Está feito o apito de cúpulas de bolota (Fig. 9).
Na feitura deste exemplar, preservei elementos das cúpulas desnecessários à produção do som (pedúnculo e raminho de bolotas não desenvolvido). Este instrumento é também um objeto cultural.


Boas apitadelas! E-ternamente!

ABERTURA

Caro Leitor,

Todos nós, com maior ou menor frequência, desejamos regressar à infância. No intuito (vão, é sabido) de recuperar a criança que fomos, de a não deixar esquecer nem morrer. É o chamado mito do eterno retorno, que para mim, hoje, é sobretudo e-terno.
Na aldeia onde nasci e cresci, e onde passo, agora, os meus dias, aprendi e partilhei, com os colegas e amigos daqueles tempos, muitos conhecimentos, saberes, habilidades, destrezas. Os que mais recordo estão ligados aos brinquedos que construíamos (por vezes em segredo - a alma do negócio) e com os quais nos divertíamos. É de alguns desses brinquedos, descrevendo a sua manufatura e usanças (espécie de manual de instruções), que me ocuparei em E-TERNO RETORNO.

Cumprimentos.
Até breve.

PS - Utilizarei, neste blogue, a grafia do novo acordo ortográfico. Mas, se me esquecer, desculpem, por favor. Obrigado!