Há dias, navegando no mar calmo da Revista Lusitana (1-ª série, 1889-1943), descobri um dos jogos prediletos de toda a rapaziada. Sobretudo daquela que carrega hoje, no lombo, umas boas dezenas de anitos. A descrição encontra-se nas páginas 89 a 92 do vol. XIII, ano 1910. E o seu autor é Cláudio Basto, um médico nascido na cidade de Viana do Castelo que trocou a medicina pelo ensino e pela investigação etnográfica, linguística e literária. Pois este docente e etnógrafo-filólogo vianês conta-nos aí como era, nos princípios do século passado, o jogo do pião.
Vou transcrever, neste post deste e-terno retorno, essa descrição. Atualizarei, porém, a ortografia. O autor, sendo um dos que defendiam, ao tempo, uma nova e única forma de escrita para o português, põe em prática uma proposta de grafia, cujas principais regras vai expondo em notas de rodapé, ao longo do artigo [«Falas e tradições do distrito de Viana do Castelo (I)»; pp. 72-94]. Os discordantes do acordo ortográfico atual deviam ler esta proposta (e as outras, contemporâneas daquela, bem como as tentativas que, com idênticos objetivos, depois se lhes seguiram).
Além do que propõe e pratica na Lusitana, Cláudio Basto também expõe, pratica e a sistematiza a sua proposta na Límia (1910-1912), de que foi cofundador, com João da Rocha e João Páris. A capa é do pintor António Carneiro. No número 1 desta vianesa «Revista mensal ilustrada de letras ciências e artes» (Outubro, 1910, p. 16), o investigador vianês começa a expor a sua proposta. Classifica-a de «ortografia racional, científica, simplificada, etc.», a qual, «com poucas variantes», é a de Gonçalves Viana, que tinha merecido «a aprovação das maiores autoridades em filologia portuguesa bem como de numerosos escritores que em livros e em periódicos a consagraram.» [Nesta citação, respeito a ortografia do original.] Cláudio Basto continuou a expor a proposta nos números seguintes da Límia. Não a concluiu, contudo. Aliás, como se deve saber, nenhuma daquelas propostas vingou. Os brasileiros recusaram-nas.
Mas… adiante, que é preciso lançar o pião.
Cláudio Basto acompanha a descrição do jogo, com notas de natureza linguística, gramatical e etnográfica. Reproduzirei, apenas, as que me parecem indispensáveis à compreensão do jogo propriamente dito.
Ora, pois era assim que se jogava o pião, há cem anos, em Viana do Castelo. E quem diz Viana, diz Minho, ou vice-versa, como diria Pedro Homem de Mello.
«É feita no chão uma circunferência de raio curto. Este pequeno círculo circunscrito é a molha.
Antes de se começar o jogo, fazem-se os ajustes: marcam-se as portas – ponto até onde será preciso levar um pião, dando-lhe de rasteiros, para o jogo ser ganho; combina-se o número de nicos que o vencedor dará no pião do vencido e que alguns rapazes substituem por bolos (palmatoadas geralmente com a mão) ou por cabalotes (= cabaleiras: - andar às cavaleiras); acordam-se as palavras que os jogadores terão de pronunciar a cada fase do jogo, etc.
Vai-se depois marcar a ordem por que os rapazes hão de jogar; chamam eles a isto apelar. Jogam todos a seguir, e o jogador cujo pião ficar na molha ou mais perto dela é o que joga primeiro, e depois os outros pela ordem de distância dos respetivos piões à molha. O pião, que tiver ficado mais longe, fica dentro dela.
O jogo: - O primeiro jogador, embaraçado o pião, joga-o d’altos* com mira a dar nico** no pião que está na molha; depois apara-o, isto é, passa-o a girar para a palma-da-mão, e dá de rasteiros com ele no outro pião, de modo a aproximá-lo das portas.
Muitos rapazes não querem dar nicos d’altos, e jogam o pião para darem de rasteiros apenas – depois de o apararem, é claro. A vantagem do nico d’altos está em que o jogador, dado o nico, já não perde, mesmo que não apare sequer o pião.
Este primeiro jogador continua a jogar até perder: até não nicar, não dar de rasteiros no pião do chão, ou não dizer as palavras combinadas.
Perdendo, é o seu pião que fica: que é posto no lugar de o que estava no chão.
Depois joga o segundo, etc., – semelhantemente.
Aquele que, por fim, levar o pião inté portas é o que ganha, e dará nesse pião os nicos dos ajustes; ou, em vez de nicos, dará bolos ou andará a cavalo, consoante o ajustado.
Alguns rapazes, para se não deteriorar o pião com que jogam, têm outro para os nicos, ao qual chamam pandelha (= pandeilha).
O pião tem um ferrão ou dois ferrões. Nos que só têm um, a substituir o segundo ferrão há uma saliência da mesma madeira a que chamam selo ou carapuça. Há ferrão de mesa, de prego, de parafuso. O de mesa tem um pratozinho que o impede de se afundar.
Em geral os rapazes não gostam dos piões com carapuça, e, quando encontram algum jogador com um pião desses, tiram-lho e lançam-no fora dizendo:
O pião que tem selo
bai p’rà casa do Campelo.
São variados os ditos que se ajustam para as operações do jogo. Ao jogarem o pião, dizem muitos:
À molha, à molha
quem quiser que ponha
e outros:
Lá bai o Fabiom (Fabião).
Quando o pião é levado de rasteiros para as portas, dizem:
Inté portas
E quando está próximo delas:
À beira da barra
se perde o nabio
- Quando o pião, ao ser deitado, fica suspenso da baraça por nela se enrodilhar o ferrão - dizem que o pião faz figo maduro.
- Quando o pião gira no mesmo ponto, diz-se que dorme, e chamam-lhe nairinho; os rapazes comentam então: - que naireza!
[…]
- Ao pião que anda a descrever curvas, balanceando-se, chamam esgaravelhão.
- Às lascas de pião tiradas com os nicos chamam pau santo. De troça, os garotos cospem nesses bocados de madeira e enterram-nos dizendo: “pau santo p`ra nascer p´rò ano”.»
Vamos, então, a uma partidinha?... Eu ainda sou rapaz, pelos vistos, para o embaraçar, lançar, aparar, pô-lo a dormir e ainda dar por cima umas boas nicadas...
Com mais assim, menos assim, era também assim-assim que se jogava (a)o pião, nos meus tempos de criança, cá no Mato.
Sim, sim!...
* Também se joga o pião por baixo, mas neste jogo não convém, pois não é possível dar nicos nem é fácil apará-lo, desta forma.
** Nico é pancada com o ferrão do pião. Noutras partes diz-se nica.
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