quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Quadras populares (mais ou menos) soltas

O namoro (I)-  Jogo de sedução e conquista

Recordar tempos de infância e juventude é também retornar e-ternamente às tradições orais que, há mais de 50 anos, se conheciam, praticavam e retransmitiam boca em boca. Também elas fazem parte do nosso património (literário e musical), apesar de cada vez mais imaterial. Nos dois posts anteriores, falei do(s) cantar(es) de reis que, cá na minha terra, crianças e adultos cantavam, de porta em porta, durante praticamente todo o invernoso mês de janeiro. Eram cantares, como referi, praticados essencialmente por conterrâneos do sexo masculino. Não recordei nem registei tudo. Evidentemente. Selecionei. É possível, por isso, que a eles, um dia, regresse. Se não com mais um post, pelo menos com uma adenda.
Não era, porém, só em janeiro que nós cantávamos e/ou ouvíamos cantar. Cantava-se mais ou menos ao longo de todo o ano. Sobretudo raparigas e mulheres. (Os rapazes e os homens preferem assobiar). Em casa e fora dela, nos trabalhos e nos lazeres. Como formas de ensinar e aprender, de prevenir e criticar, de expressar sentimentos e emoções, de manifestar alegrias e tristezas, mostrar certezas ou aliviar preocupações. Percorrendo-se, a bem dizer, todos os estados e fases da vida, pessoal e colectiva.
Há, felizmente, no Mato, quem, dotado de uma memória prodigiosa, apesar dos seus longos 84 anos, ainda saiba e recorde, lúcida e ludicamente, um vasto rol de quadras populares. Quadras que, sob a forma de cantigas e/ou simplesmente “recitadas”, em cada um daqueles estados e fases se podem agrupar. Ou, talvez, numa só, se como puro divertimento as quisermos entender. O que, no fundo, no fundo, também eram.

Refiro-me à Rosinha - Rosa Taveira Araújo, de seu nome completo - da Quinta de Arcelos, que amavelmente aceitou confiar-me a sua rica e inesgotável arca de “cantigas e versos” (que, todavia, não cantou, apenas recitou). E com que generosa prontidão e paciência! [Aqui lhe deixo, Rosinha, mais uma vez e publicamente, o meu profundo agradecimento. Agradeço também ao grande amigo, arquiteto Oliveira Martins, a preciosa ajuda e colaboração.]
Das cerca de duas centenas de quadras recolhidas junto da Rosinha, apresento, hoje, uma primeira seleção. Aquelas que situo na primeira fase do namoro, em que o candidato, julgando-se capaz e capacitado, vai ao jogo da sedução e conquista. A iniciativa pertencia, em regra, ao rapaz, segundo os usos e costumes destas terras. Mas sabe-se que nem sempre assim foi. Houve sempre “moças atrevidas”, já diziam minhas avós.
A sequência destas quadras é da minha responsabilidade. É uma tentativa de ordenação do referido jogo. Trata-se, porém, ao fim e ao cabo, de uma amostra de “quadras (mais ou menos) soltas”.
Tanta lima, tanta lima,
Tanta lima, tanta amora;
Tanta menina bonita
E meu pai sem uma nora.

Hei-de cantar, hei-de rir,
Enquanto solteira for;
Que depois de casadinha,
Quem governa é meu amor.

Deita cordões ao pescoço,
Brinquinhos a dar a dar;
É bonita, gosto dela,
Tem olhos de namorar.

Menina, não me despreze,
Por ser pobre e nada ter;
Pode o rico lhe faltar
E o pobre não a querer.
Tem olhos de namorar,
Tem olhos de querer bem;
É bonita, gosto dela,
Não gosto de mais ninguém.

Ó minha pombinha branca,
Ó ave da Primavera;
Eu só qu’ria adivinhar
A tua ideia qual era.
Foste dizer ao meu pai
Que eu andava coradinha;
Os anjos do céu me levem,
Se esta cor não era a minha.

Ó minha pombinha branca,
Ó meu pombo arrolador;
Agora é que eu vou falar,
Deveras ao meu amor.

Chamaste-me trigueirinha,
Eu bem sei que sou trigueira;
Isto foi por em pequena,
Apanhar pó e sol na eira.

Lírio roxo, tão roxinho,
Ficas-me na alma gravado;
Tens jeito de ser mansinho
E olhar de apaixonado.

Chamaste-me trigueirinha,
Eu bem sei que sou trigueira;
Hás-de me ver ao domingo,
Como a rosa na roseira.

Menina do lenço preto,
Diga-me quem lhe morreu;
Se lhe morreu o amor,
Para amor aqui ‘stou eu.

Toma lá meu coração,
E a chave para o abrir;
Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir.



E assim finda este meu e-terno retorno.

1 comentário:

  1. Caro David
    Felicito-te pela recolha e informo-te que hoje saiu para a rua um grupo de alunos e professores de Música, para "Cantar os Reis" no Centro Histórico da Vila.
    Um abraço
    J.António

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