domingo, 15 de abril de 2012

Joias Silvestres

Hoje, ao dar a minha caminhada, pelos caminhos [Agora – vejam só a modernice – chamam-lhes “ruas”, “travessas” e até “avenidas”!...] cá do Mato, minha terra natal, passei junto de um campo que foi dos meus pais e agora é propriedade de uma minha irmã. «Campo das Cortinhas», chamamos-lhe.
Era para ele que, quando puto, menos me custava levar o gado a pastar. Guardá-lo era fácil. Além disso, ficava relativamente distante de casa. A vigilância paterna era menos atenta. A terra tinha, do lado sul, uma pedreira desativada e, do lado poente, face ao caminho fundo, uma fonte. Estão, hoje, todos (uma e outro e outra) irreconhecíveis. A pedreira foi entulhada e encontra-se coberta de infestantes mimosas. O caminho subiu de nível, a todos os níveis: foi alargado, alcatroado, passou estrada, é rua – «Rua do Barreiro». A placa lá está. Mas deveria chamar-se «das Cortinhas», se se conhecesse e respeitasse a toponímia antiga. A IMAG. 1 mostra, em parte, o descrito. A fonte [Ó rapazes!] dá dó: abandonada, é um charco, uma lástima [IMAG. 2]. Dantes, os consortes mantinham-na limpa, como o rego que nela nascia. A água era potável, correntia, límpida. Servia tanto para animais, como para usos domésticos e humanos. Quantas vezes dela bebi, com a concha das mãos! Era também, naturalmente (sobretudo), utilizada na rega dos campos vizinhos.


O Campo das Cortinhas era de pasto fraco (terra de sequeiro), mas as vacas e/ou as touras dele não fugiam facilmente. Os valados das terras vizinhas dos vizinhos, o muro alto do caminho fundo e a pedreira, por um lado, e a cancela, por outro, não lhes permitiam fugas. Mesmo comigo distraído, sozinho ou acompanhado, em brinquedos e brincadeiras. [Todas bem bonitas, de nenhum modo nunca feias, Sôrabade!] A sua guarda apenas se complicava quando lhes mordia a sede ou o cio, arrebitando-lhes o rabo. [«A toura and’ò boi!  – Avisava-se – É preciso levá-la ao Pilo.» O Pilo era o lavrador que tinha o “macho de cobrição”. O serviço era pago em dinheiro ou géneros agrícolas.] Quando uma delas se inquietava [Á, sua tola!...] atirava-se às parceiras, de tal modo, que, mal a gente se desprecatava, já ela lá ia a todas, correndo, berrando e saltando, desenfreada, levando as outras atrás ou à frente. [Umas doidinhas, coitadas!]
Pois quando não tinha parceiros para brincar, arranjava eu maneiras de ocupar aquele tempo de trabalho chato, monótono, cansativo. E como só trabalha quem não sabe fazer mais nada e as vacas, depois do Pilo, nas Cortinhas, não me davam trabalhinho nenhum, lá ia eu fazendo uns brinqueditos e praticando uns divertimentos, para, assim, sem trabalhos, acelerar os ponteiros do tempo.
Nas Cortinhas, vi a esmo semeados pela natureza, entre outras ervas, muitos malmequeres bravos, na sua cor viva de amarelo intenso. Foi então que, num rápido pensamento de e-terno retorno, recordei as joias silvestres que com eles fazia, no tempo de «guardador de vacas e de sonhos», como o Constantino do Redol.
Os malmequeres [Porque raio não se lhes chama bem-mequeres?...]  abundam, nesta época do ano. Nascem, crescem, florescem, multiplicam-se e topam-se por toda a parte, num sítio qualquer. Ao deus dará. Até onde menos se espera. Mas os seus espaços preferidos são os campos cultivados. Devido, certamente, aos fertilizantes, sobretudo orgânicos, apesar de agora já não haver gados para grandes estrumes. Campos há, todavia, que mais parecem enormes tapetes amarelos, tecidos a malmequeres [IMAG. 3].


Ora, vamos lá, agora, às ditas joias. [Com os assaltos que, ultimamente, têm acontecido a ourives e ourivesarias, estas não cairão, certamente, tão facilmente nas mãos dos larápios.]
Chega de tretas! Conta mas é como se manufaturam esses “tesouros”?
Pois cá vai. Primeiro, apanha-se um bom punhado de malmequeres, retirando-se as corolas dos pedúnculos. Escolhe-se um pé, para “fio”, onde se vão enfiando as “pérolas” [IMAG. 4]. Este deve ser, por isso, o mais direitinho possível e limpo de folhas, para que o enfiamento seja fácil e as corolas não sejam danificadas e/ou destruídas [IMAG. 5]. Quanto mais longo for, maior poderá ser a joia.


Como “fio”, além de outros caules ou hastes, serviam-me também pedúnculos da flor da “língua de ovelha” [IMAG. 6], erva tão brava como os malmequeres. Aliás, encontram-se muitas vezes juntas. Danadas daninhas, como todas. Em seguida, enfia-se a ponta do pedúnculo, por trás, no centro de cada corola, atravessando-lhe o gineceu [IMAG. 7]. Com jeito, len-ta-men-te, cui-da-do-sa-men-te... Porque estes malmequeres, apesar de silvestres, são muito frágeis e delicados. [Por essas e outras é que, um dia, um aprendiz de poeta escreveu: «em cada flor há sempre um gesto / de suicídio»[1].]


Enquanto pedúnculo houver para corolas enfiar, por um lado, e o tipo, medida e quantidade de joias a construir, por outro, é continuar. Com o pedúnculo quase preenchido, enfia-se, sempre com jeito e cuidado, a ponta restante do dito no gineceu (mais ou menos) da flor [IMAG. 8]. A joia ganha, desta forma, uma forma circular [IMAG. 9].

 
Por fim, aconchegam-se as flores e... Pronto: está pronta a joia. Consoante o tamanho do diâmetro, teremos um colar, uma coroa, uma pulseira ou outra peça que adorne e enriqueça (ainda mais) cada uma destas joias. Ou outras que o engenho e a arte do “joalheiro” for capaz de inventar e produzir.
Agora, é só colocar estas preciosidades [Tão delicadas e efémeras como as outras, pois tão naturalmente reais e realmente naturais, ou mais, que as demais.] ao pescoço, na cabeça, no pulso, ou em todas estas partes e outras, ao mesmo tempo [IMAGS. 10 a 12]. Ou então, oferecê-las, ternamente, à pessoa amada, mesmo sabendo-se que não é de contar com retorno equivalente.
 

[1] David Rodrigues, 1981: O Rito do Pão. Coimbra: Centelha, p. 15.

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