Os maiores
predadores das cerejas do Mato, nos meus tempos de criança, não eram nem os
melros, nem os gaios, nem os pardais (a que nós chamávamos pardelhos). Éramos
nós, os rapazes, que, como ágeis lagartixas, marinhávamos os troncos das
grossas e altas cerejeiras (id. cerdeiras), próprias e também ou
sobretudo alheias, sem escada, à custa de braços e pernas (e, quantas vezes, de
camisas, camisolas e calças). Bastava um propor: «Vamos a elas!»
Alcançada a copa,
instalávamo-nos num dos ramos e começava o fartote, percorrendo os galhos mais
carregados delas. Isto – claro! – só quando prevíamos que o dono não faria
ronda. O que, porém, raramente acontecia. De um momento para o outro, lá
aparecia ele, praguejando a escorraçar-nos. E nós, ala, que se faz tarde! A descida
era, então, um fácil escorreganço. Doíam menos, se doessem, os arranhões que as
pedradas e/ou bordoadas e/ou bofetadas e/ou puxões d’orelhas. Dele ou do pai. Que
o homem era de queixinhas. Como se não tivesse sido também rapaz.
Acontecia,
por isso, preferirmos quebrar, rapidamente, alguns ramos, dos mais carregados,
sem cuidarmos se todos os frutos estavam maduros, independentemente de serem
das vermelhas ou das pretas. Ginjas, havia poucas. Enchíamos os bolsos
disponíveis, descíamos e partíamos. Mais ou menos desassossegados. Convém
referir que o assalto era realizado por um pequeno bando, dois ou três, por
vezes quatro. Porque, quando mais, as bocas eram demais. Assim, enquanto um e/ou
dois subiam, o(s) outro(s), em terra, vigiava(m) e/ou aparava(m) e/ou apanhava(m)
os galhos e as cerejas.
Deslocávamo-nos, em
seguida, para sítio onde fazer a partilha. Umas vezes, pataca-a-mim,
pataca-a-ti. Outras, geralmente quando o assalto rendia pouco, recorríamos à
sorte do alfinete. Um de nós trazia sempre um instrumento destes a segurar a
alça dos calções ou a fechar a carcela. Que, naqueles tempos, ainda não se
usava, no Mato, a modernice do perigoso fecho-éclair. Os respetivos botões
tinham sido fanicados (id.
fanichados) no jogo-do-pincha contra o muro ou parede, ou no jogo-do-botão-atrás-do-meco,
como substitutos dos tostões. Que a gente era pobre, meus caros! Oh, s’era!
Escolhíamos
uma superfície mais ou menos plana, geralmente pedra ou tábua, e colocávamos
nela um montículo das cerejas. Depois, cada um, à vez, lançava sobre elas o
alfinete. Se ele ficasse espetado, o jogador ganhava e papava a cereja picada.
Mas tinha que a retirar com muito cuidadinho, pois se, ao recolhê-la, a
deixasse cair, perdia e lá voltava ela ao monte. Por vezes, na mesma vez, enfiavam-se
duas. Mas isso – tó rola! – era sorte a
mais. Uma, de cada vez e bib’ò belho! E nem sempre. Sobretudo quando começavam
a ficar poucas. Então a última!... Era preciso ter cá uma pontaria!
Experimentem, se não sabem ou já se esqueceram, e digam-me!
Naquele
tempo, no Mato, alfinete era apenas aquele instrumento que – soube-o mais tarde
– outros chamavam de ama. Para os distinguir, certamente, dos de cabeça. Para
nós, também estes eram tachinhas, só que mais fininhas, como agulhas. Daquelas
que os armadores utilizavam no arranjo dos andores da festa.
Boas trincas!