Camilo e os irmãos Barbosa e Silva [02]
A
segunda referência de natureza literária à cidade de Viana e aos amigos
vianeses, deixou-a Camilo Castelo Branco também no álbum de José Barbosa e
Silva, como se leu no post anterior. Em 1853, o escritor tinha vindo
passar as festas da Páscoa a esta cidade, a convite e como hóspede dos
abastados Barbosa e Silva.
Na Quinta-feira Santa daquele ano, ao pedido de um poema, Camilo correspondeu
com um texto em prosa. Naquele dia, tocado certamente pelas cerimónias
religiosas a que assistira, não conseguia – confessa – «arrancar do coração um
poema de lagrimas», já que «a linguagem da dôr suprema é o silencio». Mas, passados
dois ou três dias, escreveu, no álbum do amigo, estes versos:
«Á
ULTIMA HORA
Bem sabes, amigo, que prisma d’encantos
Eu tinha, se em sonhos Vianna antevia!
O prisma era o modo de ver d’um poeta,
Que esconde na alma sentida poesia.
Com pranto nos olhos, Barbosa me viste,
Mendigo d’alivios, refugio buscar
Na terra, que eu vira tão linda sorrir-me,
Na terra, que encina a sentir e callar.
E a mão da amisade enchugou-me este pranto!
Barbosa, qual anjo me deste a bonança!
Bem sabes que grito de magua profunda
Fizeste callar com palavras d’esp’rança...
Amigos me deste dos muitos que tinhas
Amigos, que prendem, quaes outros não vi,
Que inspiram saudades, e crenças formosas
Na terna amisade, que eu levo daqui.
28 de Março de
1853.
Camillo Castello Branco.» (Barbosa, 1919: 73)
Camilo
confessa ter encontrado, na amizade e no conforto dos amigos vianeses, o alívio
da dor que, ultra-romanticamente,
tinha sentido e expressado no texto em prosa. Mas que dor, que sofrimento, que abatimento moral?
O
poema está datado de 28-03. Camilo regressou ao Porto, na madrugada de 29,
onde chegou à noite de 30. E logo, em 31, escreve ao amigo vianês a seguinte
carta:
«No primeiro dia dormi em Vila
Nova; no segundo vim jantar ao Porto. Não me ressinto da jornada.
Na noute desse dia cingi a
flébil cintura da valida, e vi[-]a estorcer-se em contorções amorosamente
lúbricas, mas idealmente banidas dos prazeres dos Antonys, Josés Augustos, e
quejandos vaporosos deste materialíssimo século.
Tenho-me visto em grande fadiga
de arranjar o confortable doméstico. Procuro uma criada, que preencha
as missões consignadas ao nosso cavaco – Espero-a breve, por que daí não podem
vocês dispôr, do que não lhe chega para seu uso. Grandes marotos!
Vai ao correio, e atira-me para
cá com uma carta, que lá deve estar em meu nome. Dá-me muitas saudades a teus
irmãos, e aos nossos amigos, que me deram a liberdade de lhes dar este nome
sinceramente do coração. Adeus, meu caro –
Teu
Camilo
Porto 31.3.1853.» [Cabral, 1984 (I): 59.]
Xavier
Barbosa transcreve desta, como de outras das Cem Cartas de Camillo que publicou, das muitas que possuía, apenas um
fragmento, o último parágrafo, neste caso. O sobrinho dos Barbosa e Silva, confesso
admirador do romancista, evitava, assim, revelar inconfidências, como justifica no «proemio».
Quem
seria a tal valida a quem Camilo cingiu a flébil cintura, na noite em que
pernoitou em Famalicão, e que viu
estorcer-se em contorções amorosamente lúbricas?
O destinatário da carta,
seu íntimo e confidente amigo, sabia muito bem a quem o autor se referia. E nós,
hoje, também sabemos. Lá se foi a profecia de ser monge, escrita no álbum do amigo, no final do
texto da Quinta-feira Santa.
Camilo
assistiu em Viana, como se leu, às cerimónias da Semana Santa. Confessou ter
ficado intimamente emocionado, segundo lavrou
no álbum, sobretudo com as «Lamentacoens
dos anjos do claustro», cantadas por «aquellas vozes moduladas por labios que
nunca tocaram o fel da taça mundana». Referia-se aos «cantos sagrados entoados
pelas freiras no templo das Carmelitas», indica Luís Xavier Barbosa (1919:
71). Que Carmelitas e que templo?
Em
meados do século XIX, havia ainda abertos em Viana dois conventos franciscanos
femininos de carmelitas. Um situava-se onde atualmente se encontra o Seminário das Missões do
Espírito Santo e a Igreja das Ursulinas (Fig. 02). O outro situava-se onde está
instalado o Lar de Santa Teresa e a Igreja de Nossa Senhora de Fátima (Fig.
01).
O
primeiro – Convento, sob a Regra de Santo
Agostinho – foi fundado, «por carta régia de 8-3-1778, obtida pela Câmara
Municipal de Viana». Nele funcionava, desde essa data, «o “Colégio de Nossa Senhora das Chagas”, dirigido por religiosas das
Ursulinas, com pensionato e externato para as raparigas da classe burguesa».
(Fernandes, 1990: 102)
O
segundo – Mosteiro do Desterro [de Jesus, Maria e José] – foi o último a ser fundado em Viana, no
ano de 1780. Ocupava, então, uma área muito mais vasta, compreendendo os terrenos
onde hoje se encontram a Escola E-B 2,3
de Frei Bartolomeu dos Mártires e a Escola
Secundária de Santa Maria Maior, além de outros. Isabel Pinho fez a
história do Mosteiro do Desterro de Viana do Castelo e resume a sua origem e a vocação franciscana da ordem
religiosa, nos seguintes termos:
«Num
tempo de progresso científico opôs uma fé incondicional, uma crença
essencialmente espiritual traduzida no despojamento, simplicidade e austeridade
de formas. A grandiosidade volumétrica espanta enquanto convida à elevação, ao
louvor e ao recolhimento interior, como um espelho da fundadora da Ordem
Carmelita [Santa Úrsula].» [Pinho, 2009: 319]
Foi,
certamente, neste mosteiro que Camilo ouviu aquelas lamentações que tão profundamente o comoveram e na sua memória
permaneceram. Com efeito, quatro anos depois, em carta a José Barbosa e Silva
(03-02-1857), depois de referir que estava «escrevendo artigos para a Aurora [do Lima]» e de dar indicações
sobre outros que já tinha enviado, desabafa:
«Estou morto por sair daqui [Porto]. Nunca passei tão mal de corpo e alma! Havemos de
ir ao
nosso templo das Carmelitas ouvir os
hinos da Paixão. Que saudades, e que poesia me faz a esperança! Os meus enlevos
já se não prendem a outras inspirações. Sou no íntimo da alma religioso; mas de
cabeça um homem do mundo e do século.»
[Cabral,
1984 (I): 145. Também em Barbosa, 1919: 35]
Camilo,
por esta data, preparava, com o amigo José Barbosa e Silva, a sua vinda para
Viana, a fim de se dedicar, por inteiro e antecipadamente bem pago, à redação d’A Aurora do Lima. Chegou a Viana, na tarde de 07-04-1857, com
regresso abrupto ao Porto, na manhã de 28-05. Porquê?
Hei
de voltar a esta interrogação e à presença de Camilo em Viana, quando abordar a colaboração que o
escritor manteve com A Aurora do Lima.
Mas talvez valha a pena recordar a carta que o escritor escreveu a Luís Barbosa
e Silva, a 27-05. Nela encontrar-se-á, antes da saudação final, (um)a
resposta:
«MEU CARO LUIZ B.
Recebe o meu saudoso adeus.
Parto n’esta semana p[ar]a o Porto.
Ali me tens ancioso das tuas ordens.
Não pude vencer a saudade, picada pelas incommodid[ad]es em q[ue] vivo aqui. Isto
ainda não está para mim, meu caro Luiz. O coração, ou o habito podem muito.
Adeus.
Teu do c[oração].
Camillo Castello Brc.º.» [Barbosa, 1919: 47. Também em Cabral, 1984 (II): 130]
Não
era, evidentemente, apenas o José Barbosa e Silva que sabia dos poderes que o coração ou o hábito tinham,
naqueles anos, sobre a “clandestina” vida afetiva e sentimental de Camilo. O irmão Luís, da mesma idade do escritor, também devia estar a par do que se passava, entre ele e ela.
Leituras:
BARBOSA, Luís Xavier, 1919: Cem
Cartas de Camillo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
CABRAL, Alexandre, 1984: Correspondência
de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I).
Lisboa: Horizonte.
----------, 1984a: Correspondência
de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de
Sousa (vol. II). Lisboa: Horizonte.
FERNANDES, Francisco José Carneiro,
1990: Viana Monumental e Artística.
Espaço urbano e património de Viana do Castelo. Viana do Castelo: Edição
do Grupo Desportivo e Cultural dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo,
E.P.
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Notal final
- Nas transcrições e
títulos de livros, foi respeitada a (orto)grafia das edições consultadas.
Dá-nos o David uma sequência digna daquele seu artigo,que não sei se já foi publicado,sobre Camilo e Viana. O volume promete...e os leitores agradecem!
ResponderEliminarOs meus «posts», sobre CAMILO e outros, não passam de exercícios de redação crítica... Quem agradece sou eu, pela paciência com que vão lendo estes "passatempos".
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