segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Camilo & Viana 004

Camilo e os irmãos Barbosa e Silva [03]

         
        A amizade entre Camilo Castelo Branco e os irmãos Barbosa e Silva de Viana do Castelo poder-se-á situar entre finais da década de 1840 e meados da década de 1880. Com efeito, a primeira carta (a sê-lo) do escritor, dirigida a José, irmão mais novo daquela família vianesa, é de 10 de Julho de 1849, e a última é de 23 de julho de 1885, dirigida ao Luís, único dos quatro irmãos masculinos ainda vivo (a irmã, Maria Cândida, faleceria em 1908).




      Recordemos essa primeira carta que Camilo dirigiu a José Barbosa e Silva, diretamente para o Colégio da Formiga, e comentários que a seu respeito fazem Xavier Barbosa e Alexandre Cabral.

«Ill.mo Amigo

O abraço, que se dignou transmittir-me, por via do nosso Carneiro, devo retribuir-lh’o, acompanhado destas quatro linhas fluentes e sem presumpção, se tantas são bastantes para affiançar a  V.  S.ª o  m[ui]to apreço em que tenho os seus favores.
Vai esse joven enamorado mendigar-lhe as suas distraçoens: eu creio que lhe serão de grande proveito, e, por ventura, de instrucção, que elle parece desejar. Eu espero um dia livre para cumprir uma promessa. Os banhos de mar, que a Medicina empyricam[en]te me aconselha, estorvão-me o maior numero de outras occupaçoens: – verd[ad]e é, que das mais gratas ao coração, já tenho cedido a beneplacito de uma espécie de sezão moral que me apouquenta.
Agradeço o empréstimo do livro.

10 de Julho de 1849.

Desponha do
De V. S.ª am[ig]o verdad[ei]ro
Camillo Castello Branco »
[Barbosa, 1919: 101-102. Também em Cabral, 1984 (I): 43]

          Observa, em rodapé, Xavier Barbosa, sobrinho dos irmãos Barbosa e Silva, que, face ao «tratamento cerimonioso» utilizado, «as relações entre Camilo e José Barbosa teriam começado pouco antes d’essa época, talvez nas ferias [grandes, suponho] imediatamente anteriores.» [Barbosa, 1919: 102]
Alexandre Cabral, por seu turno, depois de referir ser esta «porventura a primeira carta de Camilo para José Barbosa e Silva», cujo «autógrafo» terá, entretanto, «desaparecido», observa que o «tom da carta é presunçoso» e que «a assinatura vem por extenso, o que associado ao tratamento protocolar denota que o signatário queria ficar-se pelas normas cerimoniosas.» [Cabral, 1984 (I): 44]
De facto, as fórmulas de tratamento elevado, deferenciais de terceira pessoa, utilizadas por Camilo, desde a saudação à despedida, são de distanciamento cortês, considerando e, por isso, colocando o destinatário numa posição de superioridade. Tal, porém, pode ser resultado, por um lado, de se tratar de um registo epistolar, obviamente escrito, onde, por isso, as fórmulas de tratamento cortês eram (e são), em regra, mais formais e convencionais. Por outro lado, a carta é enviada para o Colégio da Formiga, onde José Barbosa e Silva era estudante.
Isto não invalida, por isso, que entre ambos não existisse, há já algum tempo, uma relativa amizade, fruto de algum convívio entre eles e outros seus amigos, como se depreende da troca do empréstimo de objetos (livro), de agradecimento por favores recebidos e da referência a amigos comuns. Convirá dizer que, logo na segunda carta, datável de janeiro de 1850, Camilo utiliza o tuteamento e formas de saudação e despedida corteses de proximidade e de relativa intimidade: «Meu caro José Barbosa» e «Teu do C[oração]».


          Camilo e José Barbosa e Silva conheceram-se, portanto, antes daquela data, se não em 1849, no ano anterior. Os seus primeiros encontros ter-se-ão verificado, muito provavelmente, num convívio de jovens, companheiros de boémia, no Porto, semelhante, ao que o escritor relata, logo no início, de A Mulher Fatal (1870, 1.ª ed.).
O autor-narrador recorda ter conhecido o protagonista da história, Carlos Pereira («pseudónimo», informa em rodapé), por apresentação, precisamente, de José Barbosa e Silva. Assim:

«Conheci Carlos Pereira em 1849.
Apresentara-m’o José Barbosa e Silva, no hotel francez da rua da Fabrica.
           Foi há vinte annos. Barbosa e Silva e elle eram alumnos do collegio da Formiga, nos arrabaldes do Porto. Barbosa estudava allemão. O outro, nada.
Lembram-me pormenores d’aquella noite de apresentação.
Estava também o Evaristo Basto, o principe dos folhetinistas d’aquelle tempo.
Estava José Maria Gonçalves, a satyra caustica, mas gentil e perfumada dos salões.
Estava mademoiselle Pauline, filha do dono do hotel, dama de trinta annos, espirito francez e materia não desattendivel sem os realces do espirito.
Estava, emfim, mademoiselle Marie Elesmine, mulher de quarenta e dois annos, que vigiava os trinta de Paulina, sua irmã.
O ar do meu quarto incommodava os hospedes. Eu tinha dez jarras de flores sobre uma estantinha de livros, sobre a banca de escripta, e á cabeceira do meu leito. Removi-as com amoroso respeito e escrupulo.
Era um lindo quarto o meu, lindo e rico de tantas porcelanas, e flores que vinham cada manhã d’uns hortos d’Armida onde as cultivava uma alma que as intendia, e com ellas fallava.
Vinte annos depois os olhos da minha saudade vão á rua da Fabrica, e procuram o hotel francez.
Era um palacio que ardeu ha quinze annos. No sitio d’elle está uma casa de azulejo, onde mora um tabellião, uma philarmonica, uma taverna, um carpinteiro e um basar.
O dono do hotel morreu.
Mademoiselle Marie afogou-se voluntariamente.
Mademoiselle Pauline mendiga nas ruas do Porto.
José Barbosa e Silva morreu ha trez annos.
Evaristo Basto morreu ha quatro.
José Maria Gonçalves morreu doido, ha dez.
A doce alma que colhia as flores já não vê reflorir primaveras os bolbos que ella semeou. Ha sete annos que, ao cahir da folhagem das suas acassias, por uma tarde fria de novembro, foi aquecer-se ao calor do céo, e não voltou.
Carlos Pereira morto é também.
Que admira! Foi ha vinte annos! Que longo espaço! Em vinte annos enfolha, inflora, frutea  e fenece uma geração.
Mas é pena! que todos contavam com tanta vida!
E alguns tinham pavor da velhice dos quarenta annos!» [Branco, s/d: 17-19]

Estela não foi a mulher fatal de Carlos Pereira. Essa foi outra, a sua quinta e final paixão. Cassilda Arcourt se chamava, formosíssima lisboeta afrancesada de nome, vida e comportamentos, que da capital de cá fugira, aos dezasseis anos, com o viajante francês Prosper Arcourt para a capital de lá. Por ela e para com ela viver, Carlos abandona Filomena, viúva das Beiras, com quem entretanto tinha casado e de quem tinha dois filhos. [Ao (re)ler-se o romance, cuidado com alguns anacronismos, habituais, como se sabe, no escritor.]

E mais não digo. O meu Amigo Camilo não consente que eu vá mais longe, no desfiar destes novelos de amores trágicos que ele, só ele, sabe contar. Como se sabe.

Não é só n’A Mulher Fatal, porém, que Camilo se refere explicitamente a José Barbosa e Silva. Em vários outros textos o faz, como em futuros posts mostrarei.

Antes, porém, cabe sintetizar o essencial da última carta (a não terem sido destruídas posteriores) enviada por Camilo a Luís Barbosa e Silva, a quem trata, na saudação, por «Meu Caro Luís B.» e, na despedida, se auto-refere por «teu velho amigo».
Enviada de Santo Tirso, onde Camilo se encontrava em tratamento, forçado pela doença e pelo médico, mas com poucas esperanças de restabelecimento, o escritor agradece ao amigo vianês as felicitações enviadas  pelo viscondado (visconde de Correia Botelho – «chimera que juntaram ao meu velho nome») com que fora, finalmente, agraciado, um mês antes, por decreto de 18 de Junho de 1885. [Barbosa, 1919: 96-97; Cabral, 1989: 224 e 1984 (II): 157].

Leituras:
BARBOSA, Luís Xavier, 1919: Cem Cartas de Camillo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
BRANCO, Camillo Castello, s/d (2.ª ed.; a 1.ª é de 1870): A Mulher Fatal. Lisboa: Livraria Campos Júnior, Editor.
CABRAL, Alexandre, 1984 (I): Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I). Lisboa: Horizonte.
----------, 1984 (II): Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa (vol. II). Lisboa: Horizonte.
----------, 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho.

Notas finais:
1) Os retratos de José Barbosa e Silva e de Camilo são cópias disponíveis, respetivamente, AQUI e AQUI.
2) Nas transcrições e títulos de livros, foi respeitada a (orto)grafia das edições consultadas.


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