Camilo e os irmãos Barbosa e Silva [03]
A amizade entre Camilo Castelo Branco e os irmãos Barbosa e Silva de
Viana do Castelo poder-se-á situar entre finais da década de 1840 e meados da
década de 1880. Com efeito, a primeira carta (a sê-lo) do escritor, dirigida a
José, irmão mais novo daquela família vianesa, é de 10 de Julho de 1849, e a
última é de 23 de julho de 1885, dirigida ao Luís, único dos quatro irmãos
masculinos ainda vivo (a irmã, Maria Cândida, faleceria em 1908).
Recordemos essa primeira carta que Camilo dirigiu a José Barbosa e
Silva, diretamente para o Colégio da Formiga,
e comentários que a seu respeito fazem Xavier Barbosa e Alexandre Cabral.
«Ill.mo Amigo
O abraço, que se dignou transmittir-me, por via do
nosso Carneiro, devo retribuir-lh’o, acompanhado destas quatro linhas fluentes
e sem presumpção, se tantas são bastantes para affiançar a V. S.ª
o m[ui]to apreço em que tenho os seus
favores.
Vai esse joven enamorado mendigar-lhe as suas
distraçoens: eu creio que lhe serão de grande proveito, e, por ventura, de
instrucção, que elle parece desejar. Eu espero um dia livre para cumprir uma
promessa. Os banhos de mar, que a Medicina empyricam[en]te me aconselha,
estorvão-me o maior numero de outras occupaçoens: – verd[ad]e é, que das mais
gratas ao coração, já tenho cedido a beneplacito de uma espécie de sezão moral
que me apouquenta.
Agradeço o empréstimo do livro.
10 de Julho de 1849.
Desponha do
De V. S.ª am[ig]o verdad[ei]ro
Camillo Castello
Branco »
[Barbosa,
1919: 101-102. Também em Cabral, 1984 (I): 43]
Observa, em rodapé, Xavier Barbosa, sobrinho dos irmãos Barbosa e Silva, que, face ao «tratamento cerimonioso» utilizado, «as relações entre Camilo e José Barbosa teriam começado pouco antes d’essa época, talvez nas ferias [grandes, suponho] imediatamente anteriores.» [Barbosa, 1919: 102]
Alexandre
Cabral, por seu turno, depois de referir ser esta «porventura a primeira carta
de Camilo para José Barbosa e Silva», cujo «autógrafo» terá, entretanto, «desaparecido»,
observa que o «tom da carta é presunçoso» e que «a assinatura vem por extenso,
o que associado ao tratamento protocolar denota que o signatário queria
ficar-se pelas normas cerimoniosas.» [Cabral, 1984 (I): 44]
De
facto, as fórmulas de tratamento elevado, deferenciais de terceira pessoa,
utilizadas por Camilo, desde a saudação à despedida, são de distanciamento
cortês, considerando e, por isso, colocando o destinatário numa posição de
superioridade. Tal, porém, pode ser resultado, por um lado, de se tratar de um
registo epistolar, obviamente escrito, onde, por isso, as fórmulas de
tratamento cortês eram (e são), em regra, mais formais e convencionais. Por
outro lado, a carta é enviada para o Colégio
da Formiga, onde José Barbosa e Silva era estudante.
Isto
não invalida, por isso, que entre ambos não existisse, há já algum tempo, uma
relativa amizade, fruto de algum convívio entre eles e outros seus amigos, como
se depreende da troca do empréstimo de objetos (livro), de agradecimento por
favores recebidos e da referência a amigos comuns. Convirá dizer que, logo na
segunda carta, datável de janeiro de 1850, Camilo utiliza o tuteamento e formas
de saudação e despedida corteses de proximidade e de relativa intimidade: «Meu
caro José Barbosa» e «Teu do C[oração]».
Camilo
e José Barbosa e Silva conheceram-se, portanto, antes daquela data, se não em
1849, no ano anterior. Os seus primeiros encontros ter-se-ão verificado, muito
provavelmente, num convívio de jovens, companheiros de boémia, no Porto, semelhante,
ao que o escritor relata, logo no início, de A Mulher Fatal (1870, 1.ª ed.).
O
autor-narrador recorda ter conhecido o protagonista da história, Carlos Pereira
(«pseudónimo», informa em rodapé), por apresentação, precisamente, de José
Barbosa e Silva. Assim:
«Conheci
Carlos Pereira em 1849.
Apresentara-m’o
José Barbosa e Silva, no hotel francez da rua da Fabrica.
Foi há vinte annos. Barbosa e Silva
e elle eram alumnos do collegio da Formiga, nos arrabaldes do Porto. Barbosa
estudava allemão. O outro, nada.
Lembram-me
pormenores d’aquella noite de apresentação.
Estava
também o Evaristo Basto, o principe dos folhetinistas d’aquelle tempo.
Estava
José Maria Gonçalves, a satyra caustica, mas gentil e perfumada dos salões.
Estava
mademoiselle Pauline, filha do dono do hotel, dama de trinta annos, espirito
francez e materia não desattendivel sem os realces do espirito.
Estava,
emfim, mademoiselle Marie Elesmine, mulher de quarenta e dois annos, que
vigiava os trinta de Paulina, sua irmã.
O
ar do meu quarto incommodava os hospedes. Eu tinha dez jarras de flores sobre
uma estantinha de livros, sobre a banca de escripta, e á cabeceira do meu
leito. Removi-as com amoroso respeito e escrupulo.
Era
um lindo quarto o meu, lindo e rico de tantas porcelanas, e flores que vinham
cada manhã d’uns hortos d’Armida onde as cultivava uma alma que as intendia, e
com ellas fallava.
Vinte
annos depois os olhos da minha saudade vão á rua da Fabrica, e procuram o hotel
francez.
Era
um palacio que ardeu ha quinze annos. No sitio d’elle está uma casa de azulejo,
onde mora um tabellião, uma philarmonica, uma taverna, um carpinteiro e um basar.
O
dono do hotel morreu.
Mademoiselle
Marie afogou-se voluntariamente.
Mademoiselle
Pauline mendiga nas ruas do Porto.
José
Barbosa e Silva morreu ha trez annos.
Evaristo
Basto morreu ha quatro.
José
Maria Gonçalves morreu doido, ha dez.
A
doce alma que colhia as flores já não vê reflorir primaveras os bolbos que ella
semeou. Ha sete annos que, ao cahir da folhagem das suas acassias, por uma
tarde fria de novembro, foi aquecer-se ao calor do céo, e não voltou.
Carlos
Pereira morto é também.
Que
admira! Foi ha vinte annos! Que longo espaço! Em vinte annos enfolha, inflora,
frutea e fenece uma geração.
Mas
é pena! que todos contavam com tanta vida!
E alguns tinham pavor da
velhice dos quarenta annos!» [Branco, s/d: 17-19]
Estela
não foi a mulher fatal de Carlos
Pereira. Essa foi outra, a sua quinta e final paixão. Cassilda Arcourt se
chamava, formosíssima lisboeta afrancesada de nome, vida e comportamentos, que da
capital de cá fugira, aos dezasseis anos, com o viajante francês Prosper
Arcourt para a capital de lá. Por ela e para com ela viver, Carlos abandona
Filomena, viúva das Beiras, com quem entretanto tinha casado e de quem tinha dois
filhos. [Ao (re)ler-se o romance, cuidado com alguns anacronismos, habituais,
como se sabe, no escritor.]
E
mais não digo. O meu Amigo Camilo não consente que eu vá mais longe, no desfiar
destes novelos de amores trágicos que ele, só ele, sabe contar. Como se sabe.
Não
é só n’A Mulher Fatal, porém, que
Camilo se refere explicitamente a José Barbosa e Silva. Em vários outros textos
o faz, como em futuros posts
mostrarei.
Antes,
porém, cabe sintetizar o essencial da última carta (a não terem sido destruídas
posteriores) enviada por Camilo a Luís Barbosa e Silva, a quem trata, na
saudação, por «Meu Caro Luís B.» e, na despedida, se auto-refere por «teu velho
amigo».
Enviada de Santo Tirso,
onde Camilo se encontrava em tratamento, forçado
pela doença e pelo médico, mas com
poucas esperanças de restabelecimento, o escritor agradece ao amigo vianês
as felicitações enviadas pelo viscondado
(visconde de Correia Botelho – «chimera
que juntaram ao meu velho nome») com que fora, finalmente, agraciado, um mês
antes, por decreto de 18 de Junho de 1885. [Barbosa, 1919: 96-97; Cabral, 1989:
224 e 1984 (II): 157].
Leituras:
BARBOSA, Luís Xavier, 1919: Cem Cartas de
Camillo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
BRANCO, Camillo Castello, s/d (2.ª ed.; a 1.ª é de
1870): A Mulher Fatal.
Lisboa: Livraria Campos Júnior, Editor.
CABRAL, Alexandre, 1984 (I): Correspondência
de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I).
Lisboa: Horizonte.
----------, 1984 (II): Correspondência de
Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa (vol.
II). Lisboa: Horizonte.
----------, 1989: Dicionário
de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho.
Notas finais:
1)
Os retratos de José Barbosa e Silva e de Camilo são cópias disponíveis,
respetivamente, AQUI e AQUI.
2) Nas transcrições e títulos de livros,
foi respeitada a (orto)grafia das edições consultadas.
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