domingo, 1 de dezembro de 2013

Camilo & Viana 005

Camilo e os irmãos Barbosa e Silva [04]

(A penúria do escritor, em cartas de cinco anos)


Com a visita aos amigos vianeses, na Semana Santa de 1853, as relações de amizade entre Camilo e os irmãos Barbosa e Silva terão ficado definitivamente consolidadas. O escritor deixou, então, no álbum pessoal do irmão mais novo desta família, uma texto em prosa e um poema, onde manifesta a «terna amizade» com que fora recebido e acarinhado. Tais relações foram-se desenvolvendo, em anos anteriores, ora a nível literário, a favor de José Barbosa e Silva, ora a nível financeiro, a favor de Camilo, ora a níveis de cumplicidades afetivas, mais ou menos clandestinas.

Neste post, abordarei a permanente situação de penúria económica em que Camilo viveria, refletida nas cartas que escreveu a José Barbosa e Silva, entre 1850 e 1854. Por outro lado, ver-se-á como o amigo vianês foi atendendo aos frequentes e, por vezes, aflitos pedidos de dinheiro do amigo escritor. Nos últimos dois destes cinco anos, Camilo parece querer abandonar a profissão de escritor e arranjar uma ocupação (emprego) mais estável (Comandante de Guardas da Alfândega do Porto, por exemplo). A sua produção literária diminuiu significativamente, embora tivesse continuado a escrever para jornais, pago à peça. Sentiria o escritor que as suas capacidades de imaginação e de produção literária tinham chegado ao fim?... A tal acontecer, porém, Camilo gostaria de ficar na história, ao menos, como poeta:

«Ao sair do mundo da poesia para a realidade da economia política, dolorosa metamorfose por que estou passando, quis deixar um pequeno padrão, na minha estrada, que diga [:] “Aqui passou um poeta”[.] » [Cabral, 1984 (I): 69]

O padrão a que se refere, em carta de 06/08/54, era o livro de poemas que tinha no prelo e que sairia a público dali a mês e meio. (Falarei, oportunamente, com o desenvolvimento possível, deste livro, nos seus aspetos literários e de edição.)

Após os primeiros contactos (finais de 48 ou inícios de 49) e de uma primeira carta ainda marcada por formalidades (10/07/1849), Camilo terá enviado a José Barbosa e Silva, nos cinco anos seguintes, 31 cartas. Digo terá, uma vez que outras terão sido destruídas, embora se não saiba se situáveis neste intervalo de tempo. Como «vandalescamente» destruídas foram, informa Alexandre Cabral, todas as cartas (e não terão sido poucas, digo eu) que o amigo vianês enviou ao escritor: «Em Ceide não se encontra uma única carta de José Barbosa e Silva.» [Cabral, 1984 (I): 41] Essas cartas contribuiriam, certamente, para o esclarecimento de alguns dados da vida do escritor, ainda pouco claros, e sobre os quais os biógrafos camilianistas continuam a propor interpretações, além daqueles que ficarão eternamente por conhecer.

Cartas de Camilo para José Barbosa e Silva (1850-1854)
1850
1851
1852
1853
1854
Total
010
004
002
007
008
31

O principal objeto e objetivo das cartas de 1850 é de natureza financeira. Seis delas são pedidos de dinheiro, por vezes desesperadamente, aos quais, porém, o destinatário nem sempre (cor)responde. Numa, pede a «quantia que poderes dispensar» [id.: 45]; noutra, «a quantia de 12$ réis» [id.: 46]; noutra, «50 mil réis» [id.: 47]; noutra, diz-lhe estar «resolvido a dar por 3$ réis o meu [seu] Byron e Volney», pois encontra-se «na mais urgente penúria» [id.:48]; noutra, pede «alguns pintos disponíveis […] para não estar sem dinheiro» [id.: 49]. E, por último, na última carta deste ano, dirige ao amigo de Viana que, como ele, vivia em Lisboa, o seguinte apelo, retoricamente mais dramatizado que dramático: 

«Barbosa –

Dá-me pelos meus livros 28 800 réis – ou atiro com esta vida ao inferno. Estou como não imaginas. No próximo vapor vou ao Porto. Muito preciso falar contigo antes da minha partida por que hei-de ali à tua ordem entregar o que te devo, e não torno a Lisboa.» [Id.: 50]

Os laços da amizade que haveriam de unir, efetivamente, Camilo e Barbosa e Silva, como irmãos, seriam ainda pouco fortes. Em cada uma das cartas recebidas, José registava se tinha ou não respondido, indicando também local e data. Em quatro destas seis cartas, encontra-se a anotação «”S. R.”», isto é, «sem resposta», segundo decodifica Alexandre Cabral [Id.: 45].

(Camilo - Desenho de Júlio Pomar para 1.ª edição d’O Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro, editado em 1956.)(Imagem encontra-se no Boletim Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 4 (VII Série), outubro de 1991, dedicado a Camilo: o Homem e o Artista.)

São diversos os temas que se encontram nas cartas de 1851. Porém, numa delas, datada do Porto, 20/04/51, verifica-se que a penúria financeira de Camilo continua. A dado passo, conta o escritor a «conta» (dívida) e o problema dela resultante que teve e mantém com J. I. Lopes Cabral. Não lhe tendo pago a conta, o credor, «para garantia», ficou-lhe com o «baú cheio de fatos e livros… (os meus caros livros!) e cartas de imensas e perigosas circunstâncias!» Baú esse que o tal Lopes Cabral teria ficado de lhe enviar, por estafeta, para Coimbra, mas que «repousou […] em sua casa». Pede, por isso, ao amigo vianês: «Se esse homem aí [Lisboa] está, vê, meu Barbosa, se ao menos podes haver para tua mão, uma carteira de terríveis compromissos.» [Id.: 53]
Barbosa e Silva correspondeu, certamente, ao pedido e o baú foi recuperado. Em carta de 16/01/52, Camilo escreve: «Devo-te uma dívida minha, e uma dívida alheia. Diz-me quanto desembolsaste no dinheiro, que, a meu pedido, emprestastes a Lopes Cabral.» [Id.: 56]
As cartas de Camilo para Barbosa e Silva voltam a aumentar, no ano seguinte. De apenas duas, em 52, passam a sete, em 53. A primeira já foi transcrita, em post anterior. É aquela em que o escritor relata o seu regresso ao Porto, com lúbrica pernoitada em Famalicão, logo depois da sua visita pascal aos amigos de Viana.
Continuando a revelar, nestas cartas, referências às sempre depauperadas economias de Camilo, temos, em 22/08, uma carta em que ele pede a Barbosa e Silva «cem mil réis». E promete: «Deus permitirá que em breve possa, não pagar-te os favores que te devo, mas pagar-te o sagrado dinheiro que me confiaste.» A esta carta, Barbosa e Silva respondeu, quatro dias depois, em 26, de Viana. [Id.: 64-65] E o dinheiro, segundo informa em carta de 30/08, chegou ao seu destino: «Fui entregue da quantia.» [Id.: 66]
São oito as cartas que, em 1854, Camilo escreve a José Barbosa e Silva. As dificuldades financeiras mantêm-se e talvez se tenham agravado. Em carta de 29/07, o escritor informa o amigo ter pronto um livro de poesia e que deseja, se ele o permitir, oferecer-lho, isto é, dedicar-lho. Mas, ao mesmo tempo, solicita a sua ajuda e a ajuda dos amigos do seu amigo, para o editar. [Id.: 68]
Esta coletânea de poemas, com o título invulgar de Um Livro, ficou impressa e começou a circular em finais de setembro de 54. Em carta de 01/10, o escritor informa ter remetido, pelo recoveiro, «100 exemplares, 97 da tua assinatura, e 3 que vão designados no prospecto, e que espero me remetas para os Arcos, e recebas a importância.» [Id.: 73] «É mais que certo – comenta Alexandre Cabral – que José Barbosa e Silva auxiliou o financiamento da edição do volume, que saiu sem chancela de editor, indicando apenas ter sido impresso na Tipografia de J. A. de Freitas Júnior.» [Id.: 69]
Outras breves referências, algumas implicitamente formuladas, outras pressupostas, se encontram noutras cartas camilianas de 54. Há, no entanto, uma longa e interessantíssima carta que vale a pena (re)ler. Nela, a propósito da edição, ainda em curso, de Um Livro, Camilo revela as causas das suas contínua(da)s dificuldades financeiras, apesar do intenso trabalho de escrita a que, lamenta, se tinha dedicado. E a que promete continuar a dedicar-se, pois quer pagar não só as dívidas já contraídas, mas também o novo empréstimo que aproveita para pedir. Carta que é, ao mesmo tempo e por tudo o que ela contém, como observa Alexandre Cabral, «um documento notável da idiossincrasia do escritor.»[Id.: 72] Idiossincrasia que frequentemente oscilava entre os cumes da arrogância e os sopés da humilhação.

«Meu Barbosa

Estas páginas, que te remeto, são uma parte da minha, e tua obra. Prezo-a, como a nenhuma. Verás no todo que está aí o melhor do meu coração, o suave reflexo do que fui, o protesto de lágrimas contra o mal que me fizeram, contra a secura de coração em que as ilusões me deixaram. Se me olhas o meu livro pelo prisma da arte, poderás vê-lo aleijado, pouco de vida, pobre de interesse para o vulgo, mas não mo analisarás assim, Barbosa. Daqui a vinte dias tê-lo-ás inteiro nas mãos; o último capítulo, escrito para ti, te dirá como eu quero que tu, e poucos mais avaliem o que aí deixo, como adeus à poesia, e ao que é da poesia.
Como irmão principiei, deixa-me como irmão continuar. As mais linhas que vais ler são arrancadas como do coração fibra por fibra. É necessário ter lutado muito, e muitos dias, para me abrir contigo, violentado por um destes instantes em que a vida é um peso, uma vergonha, e por desgraça uma algema de insuportável cativeiro. Eu tenho vivido mal de fortuna, graças à minha tendência para o desperdício, e para a ostentação. Tenho repelido com o pé a fortuna, e vou-me, cego de entendimento, atrás duma esperança sempre vã, mentirosa, e atraiçoada. Entrando na minha consciência, acuso-me; em presença da sociedade, que me é sempre injusta e intolerante, absolvo-me. Em todo o caso, amigo, tenho sido e sou desgraçado. Altivo de génio, com orgulhos reconcentrados, quando é necessário sacrificar à vaidade o meu bem-estar de longo tempo, sacrifico-o, perco-me, e considero-me uma pela jogada daqui para ali pelo infortúnio, a que não posso ser superior. Há um ano quiseram-me fazer um escravo do poder: impunham-me condições vilãs para me darem o talher no orçamento: desprezei-o: é uma renúncia de que a minha consciência está satisfeita[*]. Desde então, o sucessivo doer do infortúnio parece que me paralisou a inteligência. Tenho compreendido cabalmente a morte de Chatterton e Mallefille [?]. Foi assim… foi numa dessas horas de desconforto sem respiração, de abatimento sem alma para crer e esperar. E, contudo, Barbosa, reencontrei-me, galvanizei com a dor o espírito, escrevi, e escrevi muito. Aí está um livro em breve: escreveu-o [a] alma. Verás de 2.ª feira em diante três livros [**] no Nacional, escreveu-os o cálculo, a indústria, a necessidade do pão, que veio do antigo escravo amassado em lágrimas para o escritor público.
Alcancei no Rio de Janeiro uma venda certa de 300 exemplares da cada obra: posso melhorar a minha sorte; posso em poucos anos ser independente com este género de escrever fora da política. Hoje não: hoje dependo, e dou graças à Providência quando encontro no mundo um homem a quem posso dizer: ”Protege-me; salva-me de lances que não conheces, diz a um amigo, que não é esta a época em que o génio morre desamparado!”
Tenho dívidas, amigo. Mortificam-me, e vexam-me, e atiram comigo abaixo duma soberania em que me tenho mantido nesta terra. Devo-te, Barbosa, mais que dinheiro, devo-te o impagável, o bálsamo de muitas feridas. E é a ti que vou hoje abrir-me até onde pode mostrar-se o coração dum homem farto de reprimir-se, descoroçoado de espreitar a fortuna noutros recursos. Neste assunto consente que eu empregue poucas palavras. Devo-te hoje, penso eu, 212$ réis. Empresta-me o que vai daqui a 480$ réis. A minha situação desde o momento em que vieres dar-me um novo ar, melhorará. Trabalharei sempre e incessantemente para em cada ano te embolsar 10 moedas. Imagina, caro Barbosa, que protegeste um irmão, que pode um dia recordar-te, sem vergonha, épocas em que o salvaste de grandes vexames. Conheço-te. Diz-me o coração que acreditaste o meu sofrimento, e que me valeste. Adeus, meu Barbosa.
Quando tiveres juntado assinaturas manda-mas, que quero imprimi-las no catálogo. Os teus capítulos por que não vieram[***]?
Teu Camilo
Porto, 29 de Agosto de 1854.» [Cabral, 1984 (I): 70-71]
[*] Refere-se à «tentativa de aliciamento feita por Rodrigo da Fonseca Magalhães […], quando acabava de desligar-se do partido realista (ou legitimista) – de 1850 a 1853 -, do qual se afastou com repúdio público.» [Id.: 72]
[**] Deve estar a referir-se ao romance Mistérios de Lisboa, em três volumes, começado a publicar, em folhetins n’O Nacional. [Cf. id.: 72]
[***] As «assinaturas dizem respeito a compradores de Um Livro». Os «teus capítulos referem-se certamente ao romance do amigo Viver para sofrer.» [Id.: 73] 

Camilo passou estes cinco anos de mão estendida ou de chapéu na mão, perante José Barbosa e Silva. De facto, como observa Alexandre Cabral, comentando carta de 1850, «é impressionante a penúria de Camilo e a insistência com que bate à porta do vianense» [id.: 49]. Mas se, em 50, «as mais das vezes permanece insensível», nesta carta de 54, o seu amigo Barbosa anotou: «“R. em Set.º 4. – Viana”.» [Id.: 72]
O grande camilianista, todavia, em «Correspondência com os Irmãos Barbosa e Silva // Introdução», afirma que se cometeria «uma grave injustiça» duvidar-se, minimamente que seja, da «lealdade e amizade de José Barbosa e Silva para com Camilo Castelo Branco.» E acrescenta: «A família Barbosa foi um esteio – sempre oportuno e de recurso seguro – nas grandes horas dos apertos cruciais, por razões – é certo! – que não raras vezes transcenderam o que a amizade exigia.» [Id.: 35]

Nota final - Cartas ou as citações de cartas acima transcritas estiveram total ou parcialmente inéditas, até à data da sua publicação, em 1984, por Alexandre Cabral. Luís Xavier Barbosa, para certamente proteger a imagem do escritor, de quem foi admirador, não publicou, nas Cem Cartas de Camillo, aquelas em que o romancista se refere às suas dívidas ou dificuldades económicas. E, nas publicadas, omitiu as partes de igual ou idêntico teor. Daí ter-me servido, neste apontamento, exclusivamente, da edição de Alexandre Cabral.

Leituras:
CABRAL, Alexandre, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I). Lisboa: Horizonte.

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