Camilo e os irmãos
Barbosa e Silva [04]
(A penúria do escritor, em cartas de cinco anos)
Com a visita aos amigos vianeses, na Semana Santa de 1853, as relações de
amizade entre Camilo e os irmãos Barbosa e Silva terão ficado definitivamente consolidadas.
O escritor deixou, então, no álbum pessoal do irmão mais novo desta família,
uma texto em prosa e um poema, onde manifesta a «terna
amizade» com que fora recebido e acarinhado. Tais relações foram-se
desenvolvendo, em anos anteriores, ora a nível literário, a favor de José Barbosa
e Silva, ora a nível financeiro, a favor de Camilo, ora a níveis de
cumplicidades afetivas, mais ou menos clandestinas.
Neste post, abordarei a
permanente situação de penúria económica em que Camilo viveria, refletida nas
cartas que escreveu a José Barbosa e Silva, entre 1850 e 1854. Por outro lado,
ver-se-á como o amigo vianês foi atendendo aos frequentes e, por vezes, aflitos
pedidos de dinheiro do amigo escritor. Nos últimos dois destes cinco anos,
Camilo parece querer abandonar a profissão de escritor e arranjar uma ocupação
(emprego) mais estável (Comandante de Guardas da Alfândega do Porto, por
exemplo). A sua produção literária diminuiu significativamente, embora tivesse continuado
a escrever para jornais, pago à peça. Sentiria o escritor que as suas
capacidades de imaginação e de produção literária tinham chegado ao fim?... A
tal acontecer, porém, Camilo gostaria de ficar na história, ao menos, como poeta:
«Ao sair do
mundo da poesia para a realidade da economia política, dolorosa metamorfose por
que estou passando, quis deixar um pequeno padrão, na minha estrada, que diga
[:] “Aqui passou um poeta”[.] » [Cabral, 1984 (I): 69]
O padrão a que se refere, em carta
de 06/08/54, era o livro de poemas que tinha no prelo e que sairia a público
dali a mês e meio. (Falarei, oportunamente, com o desenvolvimento possível, deste
livro, nos seus aspetos literários e de edição.)
Após os primeiros contactos (finais de 48 ou inícios de 49) e de uma primeira
carta ainda marcada por formalidades (10/07/1849), Camilo terá enviado
a José Barbosa e Silva, nos cinco anos seguintes, 31 cartas. Digo terá, uma vez que outras terão sido
destruídas, embora se não saiba se situáveis neste intervalo de tempo. Como «vandalescamente»
destruídas foram, informa Alexandre Cabral, todas as cartas (e não terão sido poucas,
digo eu) que o amigo vianês enviou ao escritor: «Em Ceide não se encontra uma
única carta de José Barbosa e Silva.» [Cabral, 1984 (I): 41] Essas cartas
contribuiriam, certamente, para o esclarecimento de alguns dados da vida do
escritor, ainda pouco claros, e sobre os quais os biógrafos camilianistas
continuam a propor interpretações, além daqueles que ficarão eternamente por
conhecer.
Cartas
de Camilo para José Barbosa e Silva (1850-1854)
|
|||||
1850
|
1851
|
1852
|
1853
|
1854
|
Total
|
010
|
004
|
002
|
007
|
008
|
31
|
O principal objeto e objetivo das cartas de 1850 é de natureza
financeira. Seis delas são pedidos de dinheiro, por vezes desesperadamente, aos
quais, porém, o destinatário nem sempre (cor)responde. Numa, pede a «quantia que poderes dispensar» [id.: 45]; noutra, «a quantia de 12$ réis» [id.:
46]; noutra, «50 mil réis» [id.: 47]; noutra, diz-lhe estar «resolvido a dar por 3$ réis o meu [seu] Byron e Volney», pois encontra-se «na mais urgente penúria» [id.:48]; noutra, pede «alguns pintos disponíveis […] para não estar sem dinheiro» [id.: 49]. E, por último, na última carta
deste ano, dirige ao amigo de Viana que, como ele, vivia em Lisboa, o seguinte
apelo, retoricamente mais dramatizado que dramático:
«Barbosa –
Dá-me pelos meus livros 28 800 réis – ou atiro
com esta vida ao inferno. Estou como não imaginas. No próximo vapor vou ao
Porto. Muito preciso falar contigo antes da minha partida por que hei-de ali à
tua ordem entregar o que te devo, e não torno a Lisboa.» [Id.: 50]
Os laços da amizade que haveriam de unir,
efetivamente, Camilo e Barbosa e Silva, como irmãos, seriam ainda pouco fortes. Em cada uma das cartas recebidas,
José registava se tinha ou não respondido, indicando também local e data. Em quatro
destas seis cartas, encontra-se a anotação «”S. R.”», isto é, «sem resposta»,
segundo decodifica Alexandre Cabral [Id.:
45].
(Camilo - Desenho
de Júlio Pomar para 1.ª edição d’O
Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro, editado em 1956.)(Imagem encontra-se no
Boletim
Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 4 (VII Série), outubro de 1991, dedicado a Camilo: o Homem e o Artista.)
São diversos os temas que se encontram nas cartas de 1851. Porém, numa
delas, datada do Porto, 20/04/51, verifica-se que a penúria financeira de Camilo continua. A dado passo, conta o
escritor a «conta» (dívida) e o
problema dela resultante que teve e mantém com J. I. Lopes Cabral. Não lhe tendo
pago a conta, o credor, «para garantia», ficou-lhe com o «baú cheio de fatos e livros… (os meus caros
livros!) e cartas de imensas e perigosas circunstâncias!» Baú esse que o
tal Lopes Cabral teria ficado de lhe enviar, por estafeta, para Coimbra, mas que «repousou […] em sua casa».
Pede, por isso, ao amigo vianês: «Se esse
homem aí [Lisboa] está, vê, meu Barbosa,
se ao menos podes haver para tua mão, uma carteira de terríveis compromissos.»
[Id.: 53]
Barbosa e Silva correspondeu, certamente, ao pedido e o baú foi recuperado.
Em carta de 16/01/52, Camilo escreve: «Devo-te
uma dívida minha, e uma dívida alheia. Diz-me quanto desembolsaste no dinheiro,
que, a meu pedido, emprestastes a Lopes Cabral.» [Id.: 56]
As cartas de Camilo para Barbosa e Silva voltam a aumentar, no ano
seguinte. De apenas duas, em 52, passam a sete, em 53. A primeira já foi
transcrita, em post anterior. É aquela em que o escritor relata o seu regresso ao Porto, com lúbrica pernoitada em Famalicão, logo
depois da sua visita pascal aos amigos de Viana.
Continuando a revelar, nestas cartas, referências às sempre depauperadas
economias de Camilo, temos, em 22/08, uma carta em que ele pede a Barbosa e
Silva «cem mil réis». E promete: «Deus
permitirá que em breve possa, não pagar-te os favores que te devo, mas pagar-te
o sagrado dinheiro que me confiaste.» A esta carta, Barbosa e Silva
respondeu, quatro dias depois, em 26, de Viana. [Id.: 64-65] E o dinheiro, segundo informa em carta de 30/08, chegou
ao seu destino: «Fui entregue da quantia.»
[Id.: 66]
São oito as cartas que, em 1854, Camilo escreve a José Barbosa e Silva.
As dificuldades financeiras mantêm-se e talvez se tenham agravado. Em carta de
29/07, o escritor informa o amigo ter pronto um livro de poesia e que deseja,
se ele o permitir, oferecer-lho, isto
é, dedicar-lho. Mas, ao mesmo tempo, solicita a sua ajuda e a ajuda dos amigos
do seu amigo, para o editar. [Id.:
68]
Esta coletânea de poemas, com o título invulgar de Um Livro, ficou impressa e começou a circular em finais de setembro
de 54. Em carta de 01/10, o escritor informa ter remetido, pelo recoveiro, «100 exemplares, 97 da tua assinatura, e 3
que vão designados no prospecto, e que espero me remetas para os Arcos, e
recebas a importância.» [Id.: 73]
«É mais que certo – comenta Alexandre Cabral – que José Barbosa e Silva
auxiliou o financiamento da edição do volume, que saiu sem chancela de editor,
indicando apenas ter sido impresso na Tipografia de J. A. de Freitas Júnior.» [Id.: 69]
Outras breves referências, algumas implicitamente formuladas, outras pressupostas,
se encontram noutras cartas camilianas de 54. Há, no entanto, uma longa e
interessantíssima carta que vale a pena (re)ler. Nela, a propósito da edição,
ainda em curso, de Um Livro, Camilo
revela as causas das suas contínua(da)s dificuldades financeiras, apesar do
intenso trabalho de escrita a que, lamenta, se tinha dedicado. E a que promete
continuar a dedicar-se, pois quer pagar não só as dívidas já contraídas, mas também
o novo empréstimo que aproveita para pedir. Carta que é, ao mesmo tempo e por
tudo o que ela contém, como observa Alexandre Cabral, «um documento notável da
idiossincrasia do escritor.»[Id.: 72]
Idiossincrasia que frequentemente oscilava entre os cumes da arrogância e os
sopés da humilhação.
«Meu
Barbosa
Estas páginas, que te remeto, são uma parte da minha, e tua obra. Prezo-a,
como a nenhuma. Verás no todo que está aí o melhor do meu coração, o suave
reflexo do que fui, o protesto de lágrimas contra o mal que me fizeram, contra
a secura de coração em que as ilusões me deixaram. Se me olhas o meu livro pelo prisma da arte, poderás
vê-lo aleijado, pouco de vida, pobre de interesse para o vulgo, mas não mo
analisarás assim, Barbosa. Daqui a vinte dias tê-lo-ás inteiro nas mãos; o
último capítulo, escrito para ti, te dirá como eu quero que tu, e poucos mais
avaliem o que aí deixo, como adeus à poesia, e ao que é da poesia.
Como irmão principiei, deixa-me como irmão continuar. As mais linhas que
vais ler são arrancadas como do coração fibra por fibra. É necessário ter
lutado muito, e muitos dias, para me abrir contigo, violentado por um destes
instantes em que a vida é um peso, uma vergonha, e por desgraça uma algema de
insuportável cativeiro. Eu tenho vivido mal de fortuna, graças à minha
tendência para o desperdício, e para a ostentação. Tenho repelido com o pé a
fortuna, e vou-me, cego de entendimento, atrás duma esperança sempre vã,
mentirosa, e atraiçoada. Entrando na minha consciência, acuso-me; em presença
da sociedade, que me é sempre injusta e intolerante, absolvo-me. Em todo o
caso, amigo, tenho sido e sou desgraçado. Altivo de génio, com orgulhos
reconcentrados, quando é necessário sacrificar à vaidade o meu bem-estar de
longo tempo, sacrifico-o, perco-me, e considero-me uma pela jogada daqui para
ali pelo infortúnio, a que não posso ser superior. Há um ano quiseram-me fazer
um escravo do poder: impunham-me condições vilãs para me darem o talher no
orçamento: desprezei-o: é uma renúncia de que a minha consciência está
satisfeita[*]. Desde então, o sucessivo doer do infortúnio parece que me paralisou a
inteligência. Tenho compreendido cabalmente a morte de Chatterton e Mallefille
[?]. Foi assim… foi numa dessas horas de desconforto sem respiração, de
abatimento sem alma para crer e esperar. E, contudo, Barbosa, reencontrei-me,
galvanizei com a dor o espírito, escrevi, e escrevi muito. Aí está um livro em breve: escreveu-o [a]
alma. Verás de 2.ª feira em diante três livros [**] no Nacional, escreveu-os o cálculo, a indústria, a necessidade do pão, que veio do
antigo escravo amassado em lágrimas para o escritor público.
Alcancei no Rio de Janeiro uma venda certa de 300 exemplares da cada
obra: posso melhorar a minha sorte; posso em poucos anos ser independente com
este género de escrever fora da política. Hoje não: hoje dependo, e dou graças
à Providência quando encontro no mundo um homem a quem posso dizer:
”Protege-me; salva-me de lances que não conheces, diz a um amigo, que não é
esta a época em que o génio morre desamparado!”
Tenho dívidas, amigo. Mortificam-me, e vexam-me, e atiram comigo abaixo
duma soberania em que me tenho mantido nesta terra. Devo-te, Barbosa, mais que
dinheiro, devo-te o impagável, o bálsamo de muitas feridas. E é a ti que vou
hoje abrir-me até onde pode mostrar-se o coração dum homem farto de
reprimir-se, descoroçoado de espreitar a fortuna noutros recursos. Neste
assunto consente que eu empregue poucas palavras. Devo-te hoje, penso eu, 212$
réis. Empresta-me o que vai daqui a 480$ réis. A minha situação desde o momento
em que vieres dar-me um novo ar, melhorará. Trabalharei sempre e
incessantemente para em cada ano te embolsar 10 moedas. Imagina, caro Barbosa,
que protegeste um irmão, que pode um dia recordar-te, sem vergonha, épocas em
que o salvaste de grandes vexames. Conheço-te. Diz-me o coração que acreditaste
o meu sofrimento, e que me valeste. Adeus, meu Barbosa.
Quando tiveres juntado assinaturas manda-mas, que quero imprimi-las no
catálogo. Os teus capítulos por que não vieram[***]?
Teu Camilo
Porto, 29 de Agosto de 1854.» [Cabral, 1984 (I): 70-71]
[*] Refere-se à «tentativa de aliciamento feita por Rodrigo da Fonseca
Magalhães […], quando acabava de desligar-se do partido realista (ou
legitimista) – de 1850 a 1853 -, do qual se afastou com repúdio público.» [Id.: 72]
[**] Deve estar a referir-se ao romance Mistérios
de Lisboa, em três volumes, começado a publicar, em folhetins n’O Nacional. [Cf. id.: 72]
[***] As «assinaturas dizem respeito a compradores de Um Livro». Os «teus capítulos referem-se certamente ao romance do
amigo Viver para sofrer.» [Id.: 73]
Camilo passou estes cinco anos de mão estendida ou de chapéu na mão,
perante José Barbosa e Silva. De facto, como observa Alexandre Cabral,
comentando carta de 1850, «é impressionante a penúria de Camilo e a insistência
com que bate à porta do vianense» [id.:
49]. Mas se, em 50, «as mais das vezes permanece insensível», nesta carta de 54,
o seu amigo Barbosa anotou: «“R. em Set.º 4. – Viana”.» [Id.: 72]
O grande camilianista, todavia, em «Correspondência com os Irmãos Barbosa
e Silva // Introdução», afirma que se cometeria «uma grave injustiça»
duvidar-se, minimamente que seja, da «lealdade e amizade de José Barbosa e
Silva para com Camilo Castelo Branco.» E acrescenta: «A família Barbosa foi um
esteio – sempre oportuno e de recurso seguro – nas grandes horas dos apertos
cruciais, por razões – é certo! – que não raras vezes transcenderam o que a
amizade exigia.» [Id.: 35]
Nota final - Cartas ou as citações de cartas acima transcritas estiveram total ou
parcialmente inéditas, até à data da sua publicação, em 1984, por Alexandre
Cabral. Luís Xavier Barbosa, para certamente proteger a imagem do escritor, de
quem foi admirador, não publicou, nas Cem
Cartas de Camillo, aquelas em que o romancista se refere às suas dívidas ou
dificuldades económicas. E, nas publicadas, omitiu as partes de igual ou
idêntico teor. Daí ter-me servido, neste apontamento, exclusivamente, da edição
de Alexandre Cabral.
Leituras:
CABRAL, Alexandre, 1984: Correspondência
de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I).
Lisboa: Horizonte.
Sem comentários:
Enviar um comentário