Camilo e os irmãos Barbosa e Silva [05]
«MEU CARO BARBOSA
Escrevi um
livro, que os amigos, não aduladores, me disseram que devia definir a minha
reputação. Auxilia-me tu, com os teus am[ig]os a publical-o, e permitte-me que elle
te seja offerecido. E’ um poema, intitulado – Solidão. – Escrevi-o em dous
mezes de divorcio completo com o mundo. Amo-o. E’ a m[inh]a alma: devia
offerecer-t’o como a unica alfaia litteraria, que eu verdadeiram[en]te aprecio.
Remetto-te quatro prospectos; não queria, e não sei m[es]mo se não devia
remetter-t’os: mas é forçoso que o império das circumstancias algeme a vontade.
Recommenda-me aos teus, e faz-me justiça inteira.
(Porto, 29 de Julho de 1854.) Teu
Camillo»
[Barbosa, 1919: 109. Desenvolvi
as formas abreviadas. Também em Cabral, 1984 (I): 68]
Esta foi,
a não se terem perdido ou destruído outras, a primeira carta que Camilo
escreveu, no ano de 1854, a José Barbosa e Silva. O seu conteúdo, quanto ao
pedido de auxílio na edição do livro anunciado, foi já abordado no post Camilo
& Viana 005.
O poema (conjunto de poemas) acabou por ser editado, não com o título
de Solidão, mas estranhamente
intitulado Um Livro. Mais tarde, no
prefácio da 3.ª edição (18663), Camilo escreve que preferiria chamar-lhe
O Livro das Saudades.
«Livro
de saudades é este para mim; saudades do tempo, saudades das maguas, saudades
das esperanças que eu via por olhos marejados de lagrimas! […] Estes versos
valeram pouco entre as formosas poesias d’aquelle tempo. Hoje, quando ressoam
torrentes de primorosos poemas, nada valem. Para os amigos dos meus livros são
mais um livro: para mim são uma flor fenecida de saudade, fenecida e quasi
desfeita porque a lancei na urna das lagrimas.» [Branco, 18663: 7 e 8]
Um Livro é uma coletânea de poemas. Teve
sete edições, a última, segundo o registo da Biblioteca Nacional, é de 1968. Na
2.ª (1858) e na 3.ª (1866), o escritor introduziu alterações em poemas, tendo aumentado também o seu número. Em 54, o volume era
composto por XVIII poemas (chama-lhes «capítulos», em carta a Barbosa e Silva),
em 58, XXI, e em 66, XXV. Para a 2.ª e 3.ª edições, Camilo escreveu pequenos
prefácios. No da 2.ª, considerando, embora, que estes seus «versos» são «bagatelas
que tem um pouco de coração e nada mais», regista:
«A
primeira edição foi depressa consummida, e muito ha que esta coisa sem nome é
procurada. Reimprime-se hoje com emendas, acrescimos e diminuições também, que
havia ahi muitas pieguices e pequices que mondar. » [Branco, 1866: 5-6. Não me foi
possível, ainda, consultar a 2.ª ed.]
Três observações
devem ser ainda referidas.
Primeira: Camilo inclui, no final do volume, uma
série de «notas» [1854: 159-161 e 202-204; 18663: 172-183], onde comenta e/ou esclarece o tema de alguns poemas. A propósito de um (XVI, 1854: 144-147; XIX, 18663:
148-150), recorda e transcreve a narrativa «Vinte Dias de Agonia» [1854:
162-201 e 18663: 183-235], a que Alexandre Cabral chama «romancinho»,
informando, ainda, ter sido «estampado em 1853 no [jornal] Portuense (a partir do n.º 26, de 1 de Dezembro) com o título de Agonia de Vinte Dias.» [Cabral, 1989:
359; 20032: 437]
Segunda:
a 3.ª edição é precedida também de um prefácio de Tomás Ribeiro, onde este
autor, na sua longa «carta litteraria», como lhe chama, observa, a dado passo:
«Um livro é...
um poema truncado... um ramilhete de poemas indecisos, vagos, mysteriosos,
esboçados a traços incompletos... ás vezes não principiados... ás vezes não
acabados. Ais que se não puderam abafar; lamentos que se completam n’um riso de
ironia; preces que terminam em blasfémia; sarcasmo que se apaga em lagrimas.» [18663: XXIX]
A terceira
observação diz respeito ao dedicatário. Um
Livro, em 18663, continua oferecido
ao delicado amigo vianês, mas como «testemunho de antiga amisade e saudade
eterna». José Barbosa e Silva tinha morrido em 16 de setembro de 1865, ano em que
Camilo preparava a 3.ª edição do livro.
Camilo
deve ter sentido, profundamente, a morte do amigo de Viana. Eis a carta que,
cerca de um mês depois, escreveu a Luís Barbosa e Silva, irmão do falecido e também ele amigo do escritor:
«MEU CARO BARBOSA
Não fui quando
foram todas as consolaçoens. Para a tua angustia e para a dos teus irmãos todas
ellas deviam ser frivolas. E’ necessário deixar correr as lagrimas, e quando o
coração apenas tem sangue que dar a uma saudade, então é chegada a hora de
dizer aos que soffrem a perda de um homem como José Barbosa: “Não choreis, que
se abriu o ceo áquella alma immaculada”. Elle era tão vosso irmão pelo sangue
como meu pela bond[a]de do coração. Quando aqui passou pela derradeira vez,
escreveu ao Ramalho Ortigão, e dizia-lhe: “dê um abraço no Camillo” [.]
Lembrou-se do mais infeliz homem q[ue] elle tinha conhecido. Guardo as minhas
dores para um livro [*], com que heide
ajuntar mais uma pagina ás m[ui]tas q[ue] o choram.
Coragem, meu
amigo. Ámanhan nos encontraremos todos álem desta lama em q[ue] estão as cinzas
das pessoas que amamos. Diz isto aos teus queridos irmãos; dil-o tamb[e]m ao Seb[asti]am
de Sousa, cujas lagrimas reviam n’aquellas sentidíssimas linhas q[eu] escreveu.
Quantos amigos a chorarem um homem de bem ! A virtude não é uma mentira. As saudades
do virtuoso são um testemunho da feliz immortalid[a]de da alma d’elle.
Teu velho amigo
Lessa
da Palm[ei]ra
11
de 8.bro [outubro] de 1865. Camillo Castello Br[an]co »
[Barbosa,
1919: 83-84. Também em Cabral, 1984 (II): 134]
[*] «A promessa de
relembrar José Barbosa num livro cumpriu-a de maneira insatisfatória em 1870,
dando-o como apresentador do Carlos Pereira, personagem d’A Mulher Fatal». [Cabral, 1984 (II): 135. Ver, neste blogue, Camilo & Viana 004]
Além da
dedicatória, Camilo, na longa carta de 29/08/1854 (ver Camilo
& Viana 005),
escreve, a dado passo, que «o último capítulo [poema], escrito para ti, te dirá como eu
quero que tu, e poucos mais avaliem o que aí deixo, como adeus à poesia, e ao
que é da poesia.» [Cabral,
1984 (I): 70] É o poema que
recebe na 1.ª e na 3.ª ed., respetivamente, o n.º XVIII (pp. 154-158) e XXI
(pp. 157-161).
Para
não alongar, ainda mais este post,
apresentarei, no próximo, o referido poema. Referir-me-ei, por outro lado, ao
poema que, em princípio, daria o título de Solidão
ao volume. A mudança para Um Livro
talvez tenha a ver com as relações adulterinas e ainda clandestinas que Camilo
mantinha com Ana Plácido. Talvez…
Leituras:
BRANCO, Camilo Castelo, 1854: Um Livro. Porto: Typ[ographia] de J. A. Freitas Junior.
----------, 18663: Um Livro. Porto: Casa Viuva Moré, Editora.
BARBOSA, Luís Xavier, 1919: Cem Cartas de Camilo.
Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
CABRAL, Alexandre, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I). Lisboa: Horizonte.
----------, 1984a: Correspondência de
Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa (vol. II). Lisboa: Horizonte.
----------, 1989: Dicionário
de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho (2.ª ed.: 2003).
RIBEIRO, Thomaz, 1866: «Meu Presado Camillo»
[Carta-prefácio]. Em Branco, 18663: XI-XXXI.
Nota final:
Em citações e referências, foi mantida a
grafia do original consultado.
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