sábado, 14 de dezembro de 2013

Camilo & Viana 006

Camilo e os irmãos Barbosa e Silva [05]


«MEU CARO BARBOSA

Escrevi um livro, que os amigos, não aduladores, me disseram que devia definir a minha reputação. Auxilia-me tu, com os teus am[ig]os a publical-o, e permitte-me que elle te seja offerecido. E’ um poema, intitulado – Solidão. – Escrevi-o em dous mezes de divorcio completo com o mundo. Amo-o. E’ a m[inh]a alma: devia offerecer-t’o como a unica alfaia litteraria, que eu verdadeiram[en]te aprecio. Remetto-te quatro prospectos; não queria, e não sei m[es]mo se não devia remetter-t’os: mas é forçoso que o império das circumstancias algeme a vontade. Recommenda-me aos teus, e faz-me justiça inteira.

       (Porto, 29 de Julho de 1854.)                                            Teu  Camillo»
[Barbosa, 1919: 109. Desenvolvi as formas abreviadas. Também em Cabral, 1984 (I): 68]


Esta foi, a não se terem perdido ou destruído outras, a primeira carta que Camilo escreveu, no ano de 1854, a José Barbosa e Silva. O seu conteúdo, quanto ao pedido de auxílio na edição do livro anunciado, foi já abordado no post Camilo & Viana 005.
O poema (conjunto de poemas) acabou por ser editado, não com o título de Solidão, mas estranhamente intitulado Um Livro. Mais tarde, no prefácio da 3.ª edição (18663), Camilo escreve que preferiria chamar-lhe O Livro das Saudades.

«Livro de saudades é este para mim; saudades do tempo, saudades das maguas, saudades das esperanças que eu via por olhos marejados de lagrimas! […] Estes versos valeram pouco entre as formosas poesias d’aquelle tempo. Hoje, quando ressoam torrentes de primorosos poemas, nada valem. Para os amigos dos meus livros são mais um livro: para mim são uma flor fenecida de saudade, fenecida e quasi desfeita porque a lancei na urna das lagrimas.» [Branco, 18663: 7 e 8]

Um Livro é uma coletânea de poemas. Teve sete edições, a última, segundo o registo da Biblioteca Nacional, é de 1968. Na 2.ª (1858) e na 3.ª (1866), o escritor introduziu alterações em poemas, tendo aumentado também  o seu número. Em 54, o volume era composto por XVIII poemas (chama-lhes «capítulos», em carta a Barbosa e Silva), em 58, XXI, e em 66, XXV. Para a 2.ª e 3.ª edições, Camilo escreveu pequenos prefácios. No da 2.ª, considerando, embora, que estes seus «versos» são «bagatelas que tem um pouco de coração e nada mais», regista: 

«A primeira edição foi depressa consummida, e muito ha que esta coisa sem nome é procurada. Reimprime-se hoje com emendas, acrescimos e diminuições também, que havia ahi muitas pieguices e pequices que mondar. » [Branco, 1866: 5-6. Não me foi possível, ainda, consultar a 2.ª ed.]


Três observações devem ser ainda referidas.
Primeira: Camilo inclui, no final do volume, uma série de «notas» [1854: 159-161 e 202-204; 18663: 172-183], onde comenta e/ou esclarece o tema de alguns poemas. A propósito de um (XVI, 1854: 144-147; XIX, 18663: 148-150), recorda e transcreve a narrativa «Vinte Dias de Agonia» [1854: 162-201 e 18663: 183-235], a que Alexandre Cabral chama «romancinho», informando, ainda, ter sido «estampado em 1853 no [jornal] Portuense (a partir do n.º 26, de 1 de Dezembro) com o título de Agonia de Vinte Dias.» [Cabral, 1989: 359; 20032: 437]
 Segunda: a 3.ª edição é precedida também de um prefácio de Tomás Ribeiro, onde este autor, na sua longa «carta litteraria», como lhe chama, observa, a dado passo:

«Um livro é... um poema truncado... um ramilhete de poemas indecisos, vagos, mysteriosos, esboçados a traços incompletos... ás vezes não principiados... ás vezes não acabados. Ais que se não puderam abafar; lamentos que se completam n’um riso de ironia; preces que terminam em blasfémia; sarcasmo que se apaga em lagrimas.» [18663: XXIX]

A terceira observação diz respeito ao dedicatário. Um Livro, em 18663, continua oferecido ao delicado amigo vianês, mas como «testemunho de antiga amisade e saudade eterna». José Barbosa e Silva tinha morrido em 16 de setembro de 1865, ano em que Camilo preparava a 3.ª edição do livro.


Camilo deve ter sentido, profundamente, a morte do amigo de Viana. Eis a carta que, cerca de um mês depois, escreveu a Luís Barbosa e Silva, irmão do falecido e também ele amigo do escritor:

«MEU CARO BARBOSA

Não fui quando foram todas as consolaçoens. Para a tua angustia e para a dos teus irmãos todas ellas deviam ser frivolas. E’ necessário deixar correr as lagrimas, e quando o coração apenas tem sangue que dar a uma saudade, então é chegada a hora de dizer aos que soffrem a perda de um homem como José Barbosa: “Não choreis, que se abriu o ceo áquella alma immaculada”. Elle era tão vosso irmão pelo sangue como meu pela bond[a]de do coração. Quando aqui passou pela derradeira vez, escreveu ao Ramalho Ortigão, e dizia-lhe: “dê um abraço no Camillo” [.] Lembrou-se do mais infeliz homem q[ue] elle tinha conhecido. Guardo as minhas dores para um livro [*], com que heide ajuntar mais uma pagina ás m[ui]tas q[ue] o choram.
Coragem, meu amigo. Ámanhan nos encontraremos todos álem desta lama em q[ue] estão as cinzas das pessoas que amamos. Diz isto aos teus queridos irmãos; dil-o tamb[e]m ao Seb[asti]am de Sousa, cujas lagrimas reviam n’aquellas sentidíssimas linhas q[eu] escreveu. Quantos amigos a chorarem um homem de bem ! A virtude não é uma mentira. As saudades do virtuoso são um testemunho da feliz immortalid[a]de da alma d’elle.

Teu velho amigo
Lessa da Palm[ei]ra
11 de 8.bro [outubro] de 1865.                                        Camillo Castello Br[an]co »
[Barbosa, 1919: 83-84. Também em Cabral, 1984 (II): 134]

[*] «A promessa de relembrar José Barbosa num livro cumpriu-a de maneira insatisfatória em 1870, dando-o como apresentador do Carlos Pereira, personagem d’A Mulher Fatal». [Cabral, 1984 (II): 135. Ver, neste blogue, Camilo & Viana 004]

Além da dedicatória, Camilo, na longa carta de 29/08/1854 (ver Camilo & Viana 005), escreve, a dado passo, que «o último capítulo [poema], escrito para ti, te dirá como eu quero que tu, e poucos mais avaliem o que aí deixo, como adeus à poesia, e ao que é da poesia.» [Cabral, 1984 (I): 70] É o poema que recebe na 1.ª e na 3.ª ed., respetivamente, o n.º XVIII (pp. 154-158) e XXI (pp. 157-161).
Para não alongar, ainda mais este post, apresentarei, no próximo, o referido poema. Referir-me-ei, por outro lado, ao poema que, em princípio, daria o título de Solidão ao volume. A mudança para Um Livro talvez tenha a ver com as relações adulterinas e ainda clandestinas que Camilo mantinha com Ana Plácido. Talvez…

Leituras:
BRANCO, Camilo Castelo, 1854: Um Livro. Porto: Typ[ographia] de J. A. Freitas Junior.
----------, 18663: Um Livro. Porto: Casa Viuva Moré, Editora.
BARBOSA, Luís Xavier, 1919: Cem Cartas de Camilo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
CABRAL, Alexandre, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I). Lisboa: Horizonte.
----------, 1984a: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa (vol. II). Lisboa: Horizonte.
----------, 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho (2.ª ed.: 2003).
RIBEIRO, Thomaz, 1866: «Meu Presado Camillo» [Carta-prefácio]. Em Branco, 18663: XI-XXXI.

Nota final:
Em citações e referências, foi mantida a grafia do original consultado.


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