sábado, 9 de junho de 2012

Danadas daninhas 005


Não, não é truque fotográfico. [Este fotógrafo não tem arte para tal manha.] A surpresa que veem é a mesma que este postante viu e sentiu: uma dedaleira branca. Única, apesar de a planta oferecer flores em quatro hastes, de tamanhos diferentes. A surpreendente cor também não é fruto do terreno nem de a erva se encontrar menos exposta ao sol. Encontrei-a, ontem, inesperadamente, aqui no Mato, num eido há anos inculto, entre a «densa floresta» das outras – as danadas dedaleiras vermelhas - mais visíveis, mais abundantes, mais infestantes e, por tudo isso, mais daninhas e também mais conhecidas.

Dei uma volta a meia freguesia, na cata de mais brancas. Em vão: nenhuma outra. Salvei, por isso,  a encontrada. Um conterrâneo, para dar mais pasto às suas ovelhas e «este capim todo não as esconder», de roçadoira motorizada em punho, limpava o eido. Trouxe-a comigo, ainda presa ao torrão. Espero que goste do sítio para onde a transplantei, cuidadosamente.

Os botânicos dão a estas plantas o nome científico de «digitalis purpurea» [«Purpurea – de cor de púrpura»?... - Será que eles sabem que também há brancas?...] A sua designação mais comum, porém, é dedaleira - as suas flores têm a forma de um dedal. Mas há quem lhes chame também, pela sua forma campanular, campainhas, sendo ainda conhecidas por erva-dedal e abeloura.
Cá no Mato, a gente chama-lhes, simples e prosaicamente, traques. Isso mesmo, traques, como aquele som que, segundo Houaiss, é «ventosidade que sai ruidosamente pelo ânus», de que são sinónimos «peido» e «pum». A razão por que, por estas bandas, chamamos traques às dedaleiras reside nisto: com as suas flores, pode produzir-se um som semelhante ao tal ruído. Assim: pega-se num “dedal”, aperta-se-lhe a "boca" entre o polegar e o indicador, e depois bate-se com o “rabo” dele numa superfície mais ou menos rija. E - pum! - aí temos o indiscreto resultado deste inofensivo traque. Com a lógica vantagem de não ser preciso tapar as narinas.
Em criança, esta brincadeira praticava-se estoirando os traques, nas cabeças. Uns aos outros. Lúdica e fraternalmente. Como estes “dedais” são de tamanhos diferentes, também os traques, metaforicamente produzidos, são diferentes: uns agudos e outros graves, uns sonoros e outros abafados. Quando saíam mais sonoros, dizíamos à “vítima”: «tens a cabeça oca!» Sempre, porém, em boa paz e sem truques, como bons traquinas que éramos. Por isso, enquanto flores traqueiras havia, lá íamos todos nós traquejando, sem para o efeito precisarmos de grande traquejo. Rapazes e raparigas. Porque nisto de traques, sobretudo vermelhos, a natureza é pródiga, como se sabe.
Rico e certamente delicioso deve ser, por outro lado, o néctar que, no fundo das flores-dedais, os gordos zangões bebem. É vê-los todos enfiados nelas. E lá dentro permanecerem, longamente.

Segundo alguns textos consultados na Internet (pesquisa “dedaleira”, no Google) as folhas desta planta tem propriedades medicinais, a nível cardíaco. Doses pesadas e frequentes podem, todavia, intoxicar o organismo. Porquês? Não sei.
Vem, a propósito das dedaleiras e do seu poder curativo, a historieta (anedota verdadeira) seguinte, que termina com um truque semântico do traque. Um farmacêutico, famoso tanto pelas mezinhas que fabricava e aplicava, como pelas partidas que pregava aos fregueses, com licença de porta aberta aqui numa freguesia vizinha, fez constar que pagaria 10 escudos, por cada saco de traques. A nova espalhou-se rapidamente. Em breve, à sua botica chegavam mulheres (jornaleiras, sobretudo) carregadas destas ervas. Ganhavam, dizia-se, “mais com um saco de traques que num dia de jornal”. E o farmacêutico foi acumulando ervas e mais ervas. Diz-se que, por estas redondezas, deixaram de ser vistos traques em terras cultas e incultas, carreiros e caminhos, cangostas e valados, margens de regatos e terrenos maninhos.
Por outro lado, os lavradores começaram a queixar-se da falta de mão-de-obra para as lavradas, sementeiras e sachadas. O boticário foi, então, baixando o preço do saco: 5 escudos, 5 coroas, 10 tostões, cinco… Como, porém, havia mulheres que, apesar da baixa, continuavam a levar-lhe o produto, o homem, para acabar de vez com o negócio, passou a dizer-lhes que, dali em diante, só aceitava «traques dos outros», daqueles que, saídos pelo fundo das costas, elas conseguissem «aparar no saco». E que por esses daria, por cada um, não 5, não 10, não 15, mas sim uma rica nota de 20 mil reis.
E a freguesia de Mato e as outras aldeias circunvizinhas voltaram, nos anos seguintes, a infestar-se destas danadas daninhas. Das vermelhas. Que as brancas, pelos vistos, só raramente vêm à festa, pelos vistos. Mas a continuar esta desertificação rural, pode ser que elas voltem, também como danadas daninhas, a surpreender-nos. Por mim, são bem-vindas, e-ternamente.

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