sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Camilo & Viana 007

Camilo e os irmãos Barbosa e Silva [06]


Camilo, na longa carta que escreveu a José Barbosa e Silva, em finais de agosto de 1854 (ver Camilo & Viana 005), indica, a dado passo, referindo-se à coletânea de poemas Solidão / Um Livro, que «o último capítulo [poema], escrito para ti, te dirá como eu quero que tu, e poucos mais avaliem o que aí deixo, como adeus à poesia, e ao que é da poesia.» [Cabral, 1984 (I): 70]
O escritor, como se sabe, não abandonou nunca a poesia. Continuou a escrever e a publicar versos. Até ao fim da vida. Pode-se dizer, em verdade, que Camilo começou e terminou a sua carreira literária como poeta. Em 1845, tinha 20 anos (mas deve ter começado a poetar alguns anos antes), publicou Os Pundonores Desagravados, com o subtítulo de Poemeto em duas partes oferecido aos académicos portuenses, depois incluído em O Juízo Final e o Sonho do Inferno (1845) e, por fim, em Delitos da Mocidade [Branco, 1889: 1]. No ano em que, desesperado, pôs termo à vida (1890), publicou Nas Trevas, coletânea com o subtítulo de sonetos sentimentais e humorísticos, considerando-os, na dedicatória ao Conde de Matosinhos, as «derradeiras pulsações da sua vida litteraria». [Branco, 1890: 5] E publicou, de permeio, vários outros poemas e livros de versos.
Não é, porém, o Camilo autor de poesias que está na origem destes posts. Retomo, por isso, as relações do escritor com Viana e, em particular, com os irmãos Barbosa e Silva, para recordar que, além de oferecer (dedicar) Um Livro a José Barbosa e Silva, refere haver também no volume um capítulo escrito para o seu grande amigo. É o poema que recebe, segundo as três edições não póstumas, respetivamente, os números XVIII (1854: 154-158), XX (18582: 166-170) e XXI (18663: 157-161).

O referido poema será transcrito a seguir. Consultei, entretanto, a segunda edição de Um Livro (18582). O escritor declara, logo no início, na página anterior à página de rosto, pertencer esta edição ao sr. Francisco Gomes da Fonseca, que foi um dos seus primeiros editores, além de amigo. Camilo foi introduzindo, de edição para edição de Um Livro, além de novos poemas, novas emendas, acréscimos e diminuições. E não apenas em versos. Também no prefácio da segunda, ao reescrevê-lo para a terceira edição (18663). Por exemplo, como curiosidade: depois de referir que esta coisa sem nome [Um Livro] era de novo procurada pelos leitores, corrige o texto como a seguir apresento, em paralelo. (Sublinho alterações, incluindo, neste caso, as gráficas.)

Pref. da 2.ª ed. (18582: 8)
Pref. da 2.ª ed., na 3.ª ed. (18663: 5-6)
Reimprime-se hoje com emendas, accrescentamentos e diminuiçoens também, que havia ahi muitas piegui-ces que mondar. / Se a crytica vier agora, será bem-vinda e não perderá por serodia. O defeito capital, se está na teima, facil remedio tem. Não farei terceira edição. Isto pode o publico evital-o, negando-lhe a bem-querença com que recebeu essas coisas vagas, e sem concerto, que tem um pouco de coração, e mais nada. / Porto 28 de Setembro de 1857.
Reimprime-se hoje com emendas, acrescimos e diminuições também, que havia ahi muitas pieguices e pequices que mondar. / Se a critica vier agora, será bem vinda e não perderá por serodia. O defeito capital, se está na teima, facil remedio tem. A terceira edição poderá o publico evital-a, negando-lhe a bem-querença com que recebeu essas bagatelas, que tem um pouco de coração e mais nada. / Porto 28 de Setembro de 1857.

Também no poema «escrito» para o amigo Barbosa e Silva, Camilo introduziu emendas, pieguices e/ou pequices, tendo feito também monda semelhante em relação a outros poemas e às notas com que termina o volume.
[Sublinho, na transcrição, apenas as alterações introduzidas a nível do seu léxico pessoal, nas três edições. Além destas, o poeta fez também emendas gráficas e de pontuação. Cf. Branco, 1854: 154-158; 18582: 166-170; 18663: 157-161]

Amisade, dom precioso,
Perfume sancto na ara
Do tranquillo, e eterno goso;

   Alva perola, tão rara
Das paixões no mar bravoso; / das paixões no oceano iroso; (3.ª ed.)

   Amisade, filha cara / Amizade, luz querida (3.ª ed.)
De corações, que poderam,
Entre as ruinas tristonhas
Das illusões, que perderam,
Salvar-vos, crenças risonhas
Na lealdade do amigo;

   Halito suave e sereno
De peito de homem, sem seiva,
Porque o sceptico veneno,
Infiltrado, ulcéra e eiva
O melhor do coração;

   Querida, vem bafejar-me, / Formosa, vem bafejar-me, (3.ª ed.)
Com singella inspiração, / com singela espiração, (3.ª ed.)
A corda asperrima, rude
Do luctuoso alaude,
Sempre gemente e funereo!

   Dá que eu possa a ti altear-me
Deste baixo, e positivo
Viver de maguas rasteiras,
Em que morre o estro vivo,
Sem ideal, sem mysterio
Como o há, n’aquella dôr, / como elle é n’aquella dôr (3.ª ed.)
Grande, calida do amor, / grande, e ardente do amor. (3.ª ed.)
Suavissimo martyrio, / Ai! suavissimo martyrio, (3.ª ed.)
Que, em quanto a vida golpea,
Deixa expandir-se em delirio
A febre d’alma, que ancea.

   Não! meu Deus! é agro o calix…
Affastai-o! Antes assim…
Gelo na alma… a frialdade, / Antes n’alma esta frialdade, (2.ª ed.)
Esta languida atonia,
Triste, e escura soledade,
Profundo somno, sem fim,
Continua noute sem dia!
Mas, Senhor, na orfandade / Mas, Senhor, nesta pobresa (2.ª ed.)
Das emoções, que dão vida / De comoções que dão vida (2.ª ed.)
Fogosa, enthusiasta, ardida, / Fogosa, cálida, ardida (3.ª ed.)
Dai-me o placido remanso
D’aquella branda amizade,
D’aquelle afago d’irmão,
Em que me acolho e descanso
Das luctas do coração!
*
   Amigo! Vê que estas paginas
São minha alma! Vieram
Aos labios, que t’as disseram,
Do coração, que t’as disse.
Eu não me escondo a teus olhos!
Sabes que sofro… sabias
Que profundas agonias,
Ha muito, escondo… e de mim!
Predisseste, muitas vezes,
Os desastrados reveses
A que vieste, e a que vim!
Quasi marcaste o momento,
Em que tanto sentimento
Expirar devêra, em fim

E expirou!
                      Que salvei eu
Desse opulento thesouro
D’affeições? Só tenho um louro,
O meu mais caro tropheu…
É teu nome, amigo, aqui,
Como a primeira expressão
Que saudei, quando a escrevi
No livro da solidão…
Deixa que falle a vaidade,
Outra, já não tenho, amigo…
Deixa expandir-se a amizade!
Este orgulho é justo e nobre,
Engrandece-se comtigo.
Dou-te um nome, que não posso
Dar no mundo a mais alguém…
Foi condão, só meu, só nosso
Esta alliança d’extremos
Que te devo… aos labios vem,
Vem da alma a confissão…
Fiz-t’a já sem pejo, amigo,
Quando em ti, buscando um abrigo,
Encontrei braços de irmão…
…………………………………
*
   Olha, eu vim buscar ao ermo
Paz, e um novo coração…
Ai! não póde já fazer-m’o
Tal milagre a solidão.
Sentir profunda a saudade
Do amor, que, em outra idade,
Me deu vida, alento, e ar…
Pude! Amei, senti, transpuz
A minha alma abatida
Aos jardins d’aquella vida
Cheia de flores e de luz…
Tens assim horas acerbas, / Tens assim horas, no dia, (2.ª ed.)
Attribuladas, na cruz
Da saudade, e da agonia?
*
   Illusão! Ainda és bella,
Mesmo pallida e sombria!...
Na longa noute da alma
Brilhas, instantes, mas brilhas!...
Rica das pompas do dia,
Um relampago desferes
De deslumbrante poesia;
Mas depressa a luz se apaga,
Que o artificio accendeu…
A arte morre, esvahida,
Onde o coração morreu.

Escrevi, em Camilo & Viana 005, que a mudança do título de Solidão, inicialmente previsto, para Um Livro talvez se ficasse a dever à necessidade de ocultar indícios das relações adulterinas e ainda clandestinas que Camilo manteria, já em 1854, com Ana Plácido. Entretanto, comecei a ler, com a devida atenção, um livro que põe em causa, praticamente, tudo o que até agora foi dito pelos principais biógrafos camilianistas, desde José Cardoso Vieira de Castro (1838-1872) – e mesmo pelos próprios amantes – até Alexandre Cabral (1917-1996), acerca das relações amorosas do escritor com Ana Plácido. A começar, desde logo, pela data, local e circunstâncias do seu primeiro encontro ou conhecimento, ao início de troca de correspondência, de namoro e amor clandestino, passando pela «questão de paternidade» de Manuel Plácido, «filho primogénito» de Ana Augusta, casada e ainda a conviver com Manuel Pinheiro Alves. Refiro-me ao volume Camilo e Ana Plácido – Episódios ignorados da célebre paixão romântica, da autoria de Manuel Tavares Teles, editado em 2008, pela entretanto extinta editora Caixotim.
Continuo a ler Camilo e Ana Plácido, obra recheada de importantes informações, reveladora de minuciosas e pacientes investigações e comparações. Espero dedicar-lhe, oportunamente, um ou mais posts. Até porque, além do mais, Tavares Teles utiliza, para defender as suas teses, muitas cartas que Camilo escreveu a José Barbosa e Silva, dando-lhes interpretações (e, por vezes, datações) diferentes das que lhes havia dado Alexandre Cabral, nos dois volumes da Correspondência de Camilo Castelo Branco com os irmãos Barbosa e Silva (1984).
Até lá, talvez seja interessante transcrever o início (apenas o início, do longo poema, com mais de duas centenas e meia de versos), n.º I nas três edições, onde se encontra, muito possivelmente, a razão por que Camilo pensava chamar à coletânea Solidão, antes de optar por Um Livro.
[Como fiz em relação ao poema acima transcrito, também aqui indico, sublinhando, as emendas que o autor introduziu nas três edições. Na 1.ª e 2.ª, os versos transcritos constituem duas estrofes. Na 3.ª, três. A separação que se faz, na transcrição de alguns versos da 1.ª (e 2.ª), destina-se a visualar melhor as alterações introduzidas pelo poeta. Cf. 1854: 5-6; 18582: 9-10; 18663: 1-2.]

Solidão! não foi de balde    /  Soledade, triste amiga, (3.ª ed.)
Que te vim pedir afagos;        /  vim buscar nos teus afagos (3.ª ed.)
           /  suavidade á minha cruz; (3.ª ed.)
Das-me crenças, sonhos vagos  /  dá-me aquelles sonhos vagos, (3.ª ed.)
           /  aquellas crenças ditosas (3.ª ed.)
Em que a alma folga e espera
Paz, e amor, esp’rança, e luz.
Paz! se o mundo bem soubera
A que bens ella conduz…
Amor!... aspiração, gloria,
Que innobrece o coração!      /  que dilata o coração! (3.ª ed.)
Esp’rança!... luz tranzitoria,
Que nos mostra, a furto, o ceo!...

Luz ideal de tantas côres,
Projectada em tantas flores,    / Reflectida em tantas flores, (2.ª e 3.ª ed.)
Grinaldas d’anjos, e amores,
Mil poemas, n’um instante,
Abrangendo o infindo espaço
D’aquellas maguas de Tasso,
Das fantasias do Dante!...
*
   Solidão! grato remanso,
Onde eu vim, do mar irado,
Como naufrago, cansado,
Recostar-me em teu abrigo,
Ai! Não digas teu segredo
Aos que sofrem, se, no mundo,  / aos que sofrem. N’este mundo,
/ n’este inhospito degredo,
Há quem sofra! Tenho medo,  / quem não soffre? Tenho medo,
     / que te amem quanto eu amo,
Que me roubem teu carinho.
Sê só minha; e eu, sosinho,    / Sê tu minha; que eu, sósinho,
Como a ave, que, além canta,
Dou-te um altar, no coração;
Cantarei na harpa sancta,
Consagrada ao ceo, os hymnos, / ao Senhor votada, o hymno,
Que me inspiras, solidão!       / que me influes, oh solidão! (3.ª ed.)

*                                            *
[…]

Na terceira edição, Camilo substitui a invocação «Solidão» por «Soledade». Porquê? Embora os termos possam ser considerados quase-sinónimos, «Solidão» é, no poema, a personificação de um estado de espírito, do sentimento de alguém que se sente só, solitário e, no caso, assim se compraz. «Soledade» é a personificação, real ou fictícia, desse estado / sentimento, um nome próprio, portanto. «Soledade» é, então, a «triste amiga», em quem o poeta procura os afagos que lhe suavizassem a cruz do viver. Mas receia voltar a perdê-los, perdendo-a, se ele revelar «o segredo» que os une. Nesse caso, o sofrimento do poeta solitário será maior, porque, então, terá medo «que te amem quanto eu amo / que me roubem teu carinho!» Implora, por isso: «Sê tu (só) minha; que eu sósinho, / como a ave, que, além canta, / dou-te um altar, no coração».
E se a ainda imprecisa «Solidão», em 1854 e 18582, e depois a mais concreta «Soledade», em 18663, fossem invocações fictícias / poéticas de uma e mesma pessoa – Ana Plácido?
Ana Plácido, sabe-se, foi também escritora, além de tradutora. Publicou, além artigos em vários jornais e revistas, dois livros: Luz Coada por Ferros (1863) e Herança de Lágrimas (1871), este último com o pseudónimo Lopo de Sousa. E deixou vários inéditos, alguns dos quais foram publicados, celebrava-se o 1.º centenário do nascimento do escritor, por Alberto Veloso d’Araújo, no livro Camilo em San Miguel de Seide. Ora, num destes inéditos (uma espécie de carta literária, dirigida a uma «D. Amélia Ferreira», logo depois simplesmente tratada por «minha querida D. Amélia»), Ana Plácido, depois de recordar uma paixão que, há cerca de 40 anos, havia tido na sua juventude, termina assinando com o pseudónimo Soledade. [1925: 165-169]
E agora?...
Seria Camilo, naquele longínquo tempo, o objeto principal (ou o agente) dessa paixão? Se não, que outro seria? E, neste caso, quando e como é que Camilo soube quem foi ele (ou ainda era)? E quando é que o escritor ficou a saber que Ana usava também o pseudónimo Soledade?
Gostava de poder responder a todas estas questões e a outras tantas que, como as cerejas, com elas se prendem. As leituras, todavia, continuam…

Leituras:
BRANCO, Camilo Castelo, 1854: Um Livro. Porto: Typ[ographia] de J. A. Freitas Junior.
----------, 18582: Um Livro. Porto: Typographia de F. G. da Fonseca.
----------, 18663: Um Livro. Porto: Casa Viuva Moré, Editora.
----------, 1889: Delictos da Mocidade – Primeiros attentados litterarios de Camillo Castello-Branco. Porto: Livraria Civilisação.
----------, 1890: Nas Trevas – Sonetos sentimentaes e humorísticos. Lisboa: Livraria Editora, Tavares Cardoso & Irmão.
CABRAL, Alexandre, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I). Lisboa: Horizonte.
----------, 1984a: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa (vol. II). Lisboa: Horizonte.
----------, 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho (2.ª ed.: 2003).
TELES, Manuel Tavares, 2008: Camilo e Ana Plácido – Episódios ignorados da célebre paixão romântica. S/L: Edições Caixotim.
VELOSO d’ARAÚJO, [Alberto], 1925: Camilo em San Miguel de Seide. Braga: Livraria Cruz.

Nota
Para tornar ainda mais "pesado" este post, não coloquei imagens.

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