Camilo e os irmãos Barbosa e Silva [06]
Camilo,
na longa carta que escreveu a José Barbosa e Silva, em finais de agosto de 1854
(ver Camilo
& Viana 005),
indica, a dado passo, referindo-se à coletânea de poemas Solidão / Um Livro, que «o último capítulo [poema],
escrito para ti, te dirá como eu quero que tu, e poucos mais avaliem o que aí
deixo, como adeus à poesia, e ao que é da poesia.» [Cabral,
1984 (I): 70]
O escritor, como
se sabe, não abandonou nunca a poesia. Continuou a escrever e a publicar versos.
Até ao fim da vida. Pode-se dizer, em verdade, que Camilo começou e terminou a
sua carreira literária como poeta. Em 1845, tinha 20 anos (mas deve ter começado
a poetar alguns anos antes), publicou Os
Pundonores Desagravados, com o subtítulo de Poemeto em duas partes oferecido aos académicos portuenses, depois
incluído em O Juízo Final e o Sonho do
Inferno (1845) e, por fim, em Delitos
da Mocidade [Branco, 1889: 1]. No ano em que, desesperado, pôs termo à vida
(1890), publicou Nas Trevas,
coletânea com o subtítulo de sonetos
sentimentais e humorísticos, considerando-os, na dedicatória ao Conde de
Matosinhos, as «derradeiras pulsações da sua vida litteraria». [Branco, 1890: 5]
E publicou, de permeio, vários outros poemas e livros de versos.
Não é,
porém, o Camilo autor de poesias que está na origem destes posts. Retomo, por isso, as relações do escritor com Viana e, em
particular, com os irmãos Barbosa e Silva, para recordar que, além de oferecer (dedicar) Um Livro a José Barbosa e Silva, refere haver também no volume um capítulo escrito para o seu grande amigo. É o poema que recebe, segundo as três
edições não póstumas, respetivamente, os números XVIII (1854: 154-158), XX (18582:
166-170) e XXI (18663: 157-161).
O
referido poema será transcrito a seguir. Consultei, entretanto, a segunda
edição de Um Livro (18582).
O escritor declara, logo no início, na página anterior à página de rosto, pertencer esta edição ao sr. Francisco Gomes da Fonseca, que
foi um dos seus primeiros editores, além de amigo. Camilo foi introduzindo, de
edição para edição de Um Livro, além
de novos poemas, novas emendas, acréscimos e diminuições. E não
apenas em versos. Também no prefácio da segunda, ao reescrevê-lo para a
terceira edição (18663). Por exemplo, como curiosidade: depois de
referir que esta coisa sem nome [Um Livro]
era de novo procurada pelos leitores,
corrige o texto como a seguir apresento, em paralelo. (Sublinho alterações,
incluindo, neste caso, as gráficas.)
Pref.
da 2.ª ed. (18582: 8)
|
Pref.
da 2.ª ed., na 3.ª ed. (18663: 5-6)
|
Reimprime-se hoje com emendas, accrescentamentos e diminuiçoens
também, que havia ahi muitas piegui-ces que mondar. / Se a crytica
vier agora, será bem-vinda e não perderá por serodia. O defeito
capital, se está na teima, facil remedio tem. Não farei terceira edição.
Isto pode o publico evital-o, negando-lhe a bem-querença com que recebeu
essas coisas vagas, e sem concerto, que tem um pouco de coração, e
mais nada. / Porto 28 de Setembro de 1857.
|
Reimprime-se hoje com emendas, acrescimos e diminuições
também, que havia ahi muitas pieguices e pequices que mondar. / Se a critica
vier agora, será bem vinda e não perderá por serodia. O defeito
capital, se está na teima, facil remedio tem. A terceira edição poderá o
publico evital-a, negando-lhe a bem-querença com que recebeu essas bagatelas,
que tem um pouco de coração e mais nada. / Porto 28 de Setembro de 1857.
|
Também
no poema «escrito» para o amigo Barbosa e Silva, Camilo introduziu emendas, pieguices e/ou pequices,
tendo feito também monda semelhante em
relação a outros poemas e às notas
com que termina o volume.
[Sublinho,
na transcrição, apenas as alterações introduzidas a nível do seu léxico
pessoal, nas três edições. Além destas, o poeta fez também emendas gráficas e de pontuação. Cf. Branco, 1854: 154-158; 18582: 166-170; 18663:
157-161]
Amisade, dom precioso,
Perfume sancto na ara
Do tranquillo, e eterno goso;
Alva perola, tão
rara
Das paixões no mar bravoso; / das paixões no oceano
iroso; (3.ª
ed.)
Amisade, filha
cara / Amizade, luz querida (3.ª ed.)
De corações, que poderam,
Entre as ruinas tristonhas
Das illusões, que perderam,
Salvar-vos, crenças risonhas
Na lealdade do amigo;
Halito suave e
sereno
De peito de homem, sem seiva,
Porque o sceptico veneno,
Infiltrado, ulcéra e eiva
O melhor do coração;
Querida, vem
bafejar-me, / Formosa, vem bafejar-me, (3.ª ed.)
Com singella inspiração, / com singela espiração,
(3.ª
ed.)
A corda asperrima, rude
Do luctuoso alaude,
Sempre gemente e funereo!
Dá que eu possa a
ti altear-me
Deste baixo, e positivo
Viver de maguas rasteiras,
Em que morre o estro vivo,
Sem ideal, sem mysterio
Como o há, n’aquella dôr, / como elle é n’aquella dôr (3.ª ed.)
Grande, calida do amor, / grande, e ardente do amor. (3.ª ed.)
Suavissimo martyrio, / Ai! suavissimo martyrio, (3.ª ed.)
Que, em quanto a vida golpea,
Deixa expandir-se em delirio
A febre d’alma, que ancea.
Não! meu Deus! é
agro o calix…
Affastai-o! Antes assim…
Gelo na alma… a frialdade, / Antes
n’alma esta frialdade,
(2.ª ed.)
Esta languida atonia,
Triste, e escura soledade,
Profundo somno, sem fim,
Continua noute sem dia!
Mas, Senhor, na orfandade / Mas, Senhor, nesta
pobresa
(2.ª ed.)
Das emoções, que dão vida / De comoções que
dão vida (2.ª
ed.)
Fogosa, enthusiasta, ardida, / Fogosa, cálida,
ardida
(3.ª ed.)
Dai-me o placido remanso
D’aquella branda amizade,
D’aquelle afago d’irmão,
Em que me acolho e descanso
Das luctas do coração!
*
Amigo! Vê que estas
paginas
São minha alma! Vieram
Aos labios, que t’as disseram,
Do coração, que t’as disse.
Eu não me escondo a teus olhos!
Sabes que sofro… sabias
Que profundas agonias,
Ha muito, escondo… e de mim!
Predisseste, muitas vezes,
Os desastrados reveses
A que vieste, e a que vim!
Quasi marcaste o momento,
Em que tanto sentimento
Expirar devêra, em fim
E expirou!
Que
salvei eu
Desse opulento thesouro
D’affeições? Só tenho um louro,
O meu mais caro tropheu…
É teu nome, amigo, aqui,
Como a primeira expressão
Que saudei, quando a escrevi
No livro da solidão…
Deixa que falle a vaidade,
Outra, já não tenho, amigo…
Deixa expandir-se a amizade!
Este orgulho é justo e nobre,
Engrandece-se comtigo.
Dou-te um nome, que não posso
Dar no mundo a mais alguém…
Foi condão, só meu, só nosso
Esta alliança d’extremos
Que te devo… aos labios vem,
Vem da alma a confissão…
Fiz-t’a já sem pejo, amigo,
Quando em ti, buscando um abrigo,
Encontrei braços de irmão…
…………………………………
*
Olha, eu vim buscar
ao ermo
Paz, e um novo coração…
Ai! não póde já fazer-m’o
Tal milagre a solidão.
Sentir profunda a saudade
Do amor, que, em outra idade,
Me deu vida, alento, e ar…
Pude! Amei, senti, transpuz
A minha alma abatida
Aos jardins d’aquella vida
Cheia de flores e de luz…
Tens assim horas acerbas, / Tens assim horas, no
dia, (2.ª
ed.)
Attribuladas, na cruz
Da saudade, e da agonia?
*
Illusão! Ainda és
bella,
Mesmo pallida e sombria!...
Na longa noute da alma
Brilhas, instantes, mas brilhas!...
Rica das pompas do dia,
Um relampago desferes
De deslumbrante poesia;
Mas depressa a luz se apaga,
Que o artificio accendeu…
A arte morre, esvahida,
Onde o coração morreu.
Escrevi,
em Camilo
& Viana 005,
que a mudança do título de Solidão,
inicialmente previsto, para Um Livro
talvez se ficasse a dever à necessidade de ocultar indícios das relações
adulterinas e ainda clandestinas que Camilo manteria, já em 1854, com Ana
Plácido. Entretanto, comecei a ler, com a devida atenção, um livro que põe em
causa, praticamente, tudo o que até agora foi dito pelos principais biógrafos
camilianistas, desde José Cardoso Vieira de Castro (1838-1872) – e mesmo pelos
próprios amantes – até Alexandre
Cabral (1917-1996), acerca
das relações amorosas do escritor com Ana Plácido. A começar, desde logo, pela
data, local e circunstâncias do seu primeiro encontro ou conhecimento, ao
início de troca de correspondência, de namoro e amor clandestino, passando pela
«questão de paternidade» de Manuel Plácido, «filho primogénito» de Ana Augusta,
casada e ainda a conviver com Manuel Pinheiro Alves. Refiro-me ao volume Camilo e Ana Plácido – Episódios ignorados
da célebre paixão romântica, da autoria de Manuel Tavares Teles, editado em
2008, pela entretanto extinta editora Caixotim.
Continuo
a ler Camilo e Ana Plácido, obra recheada
de importantes informações, reveladora de minuciosas e pacientes investigações
e comparações. Espero dedicar-lhe, oportunamente, um ou mais posts. Até porque, além do mais, Tavares
Teles utiliza, para defender as suas teses,
muitas cartas que Camilo escreveu a José Barbosa e Silva, dando-lhes
interpretações (e, por vezes, datações) diferentes das que lhes havia dado
Alexandre Cabral, nos dois volumes da Correspondência
de Camilo Castelo Branco com os irmãos Barbosa e Silva (1984).
Até lá,
talvez seja interessante transcrever o início (apenas o início, do longo poema,
com mais de duas centenas e meia de versos), n.º I nas três edições, onde se
encontra, muito possivelmente, a razão por que Camilo pensava chamar à
coletânea Solidão, antes de optar por
Um Livro.
[Como fiz em
relação ao poema acima transcrito, também aqui indico, sublinhando, as emendas que o autor introduziu nas três
edições. Na 1.ª e 2.ª, os versos transcritos constituem duas estrofes. Na 3.ª,
três. A separação que se faz, na transcrição de alguns versos da 1.ª (e 2.ª),
destina-se a visualar melhor as alterações introduzidas pelo poeta. Cf. 1854: 5-6; 18582: 9-10;
18663: 1-2.]
Solidão! não foi de balde / Soledade,
triste amiga,
(3.ª
ed.)
Que te vim pedir
afagos; / vim buscar nos teus afagos (3.ª ed.)
/ suavidade
á minha cruz; (3.ª
ed.)
Das-me
crenças, sonhos vagos / dá-me
aquelles sonhos vagos, (3.ª ed.)
/ aquellas crenças ditosas (3.ª ed.)
Em
que a alma folga e espera
Paz,
e amor, esp’rança, e luz.
Paz!
se o mundo bem soubera
A
que bens ella conduz…
Amor!...
aspiração, gloria,
Que
innobrece o coração! / que dilata o coração! (3.ª ed.)
Esp’rança!...
luz tranzitoria,
Que
nos mostra, a furto, o ceo!...
Luz
ideal de tantas côres,
Projectada
em tantas flores, / Reflectida em tantas flores,
(2.ª
e 3.ª ed.)
Grinaldas
d’anjos, e amores,
Mil
poemas, n’um instante,
Abrangendo
o infindo espaço
D’aquellas
maguas de Tasso,
Das
fantasias do Dante!...
*
Solidão! grato remanso,
Onde
eu vim, do mar irado,
Como
naufrago, cansado,
Recostar-me
em teu abrigo,
Ai!
Não digas teu segredo
Aos
que sofrem, se, no mundo, / aos
que sofrem. N’este mundo,
/
n’este inhospito degredo,
Há
quem sofra! Tenho medo, / quem
não soffre? Tenho medo,
/ que te
amem quanto eu amo,
Que
me roubem teu carinho.
Sê
só minha; e eu, sosinho, / Sê tu minha; que eu, sósinho,
Como
a ave, que, além canta,
Dou-te
um altar, no coração;
Cantarei
na harpa sancta,
Consagrada
ao ceo, os hymnos, / ao Senhor votada, o hymno,
Que
me inspiras, solidão! /
que me influes, oh solidão! (3.ª ed.)
* *
[…]
Na
terceira edição, Camilo substitui a invocação «Solidão» por «Soledade». Porquê?
Embora os termos possam ser considerados quase-sinónimos, «Solidão» é, no
poema, a personificação de um estado de espírito, do sentimento de alguém que
se sente só, solitário e, no caso, assim se compraz. «Soledade» é a
personificação, real ou fictícia, desse estado / sentimento, um nome próprio,
portanto. «Soledade» é, então, a «triste amiga», em quem o poeta procura os afagos que lhe suavizassem a cruz do viver. Mas receia voltar a perdê-los, perdendo-a, se ele revelar «o
segredo» que os une. Nesse caso, o sofrimento do poeta solitário será maior,
porque, então, terá medo «que te amem
quanto eu amo / que me roubem teu carinho!» Implora, por isso: «Sê tu (só)
minha; que eu sósinho, / como a ave, que, além canta, / dou-te um altar, no
coração».
E
se a ainda imprecisa «Solidão», em 1854 e 18582, e depois a mais
concreta «Soledade», em 18663, fossem invocações fictícias /
poéticas de uma e mesma pessoa – Ana Plácido?
Ana
Plácido, sabe-se, foi também escritora, além de tradutora. Publicou, além
artigos em vários jornais e revistas, dois livros: Luz Coada por Ferros (1863) e Herança
de Lágrimas (1871), este último com o pseudónimo Lopo de Sousa. E deixou vários
inéditos, alguns dos quais foram publicados, celebrava-se o 1.º centenário do
nascimento do escritor, por Alberto Veloso d’Araújo, no livro Camilo em San Miguel de Seide. Ora, num
destes inéditos (uma espécie de carta literária, dirigida a uma «D. Amélia
Ferreira», logo depois simplesmente tratada por «minha querida D. Amélia»), Ana
Plácido, depois de recordar uma paixão que, há cerca de 40 anos, havia tido na
sua juventude, termina assinando com o pseudónimo Soledade. [1925: 165-169]
E
agora?...
Seria
Camilo, naquele longínquo tempo, o objeto principal (ou o agente) dessa paixão?
Se não, que outro seria? E, neste caso, quando e como é que Camilo soube quem foi ele (ou ainda era)? E quando é que o escritor ficou a saber que Ana
usava também o pseudónimo Soledade?
Gostava
de poder responder a todas estas questões e a outras tantas que, como as cerejas, com
elas se prendem. As leituras, todavia, continuam…
Leituras:
BRANCO, Camilo Castelo, 1854: Um Livro. Porto: Typ[ographia] de J. A. Freitas Junior.
----------, 18582: Um Livro. Porto: Typographia de F. G. da Fonseca.
----------, 18663: Um Livro. Porto: Casa Viuva Moré, Editora.
----------, 1889: Delictos
da Mocidade – Primeiros attentados litterarios de Camillo Castello-Branco. Porto: Livraria
Civilisação.
----------, 1890: Nas Trevas – Sonetos sentimentaes e humorísticos. Lisboa: Livraria
Editora, Tavares Cardoso & Irmão.
CABRAL, Alexandre, 1984: Correspondência de Camilo
Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I). Lisboa:
Horizonte.
----------, 1984a: Correspondência de Camilo
Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa (vol.
II). Lisboa: Horizonte.
----------, 1989: Dicionário
de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho (2.ª ed.: 2003).
TELES, Manuel Tavares, 2008: Camilo e Ana Plácido – Episódios ignorados da célebre paixão romântica.
S/L: Edições Caixotim.
VELOSO d’ARAÚJO, [Alberto], 1925: Camilo em San Miguel de Seide. Braga: Livraria Cruz.
Nota
Para tornar ainda mais "pesado" este post, não coloquei imagens.
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